As notícias da falta de originalidade em Hollywood foram manifestamente exageradas. É verdade que os grandes estúdios já só apostam em sequelas, remakes, e filmes de super-heróis (com as suas próprias sequelas e remakes), mas isso só faz com que tenhamos de procurar noutro lado. Até os novos lançamentos da Pixar – que, principalmente depois de ter sido comprada pela Disney, pode ser chamada de “grande estúdio” – caíram no marasmo das sequelas boçais e das fórmulas desinspiradas, nos últimos anos, depois de verdadeiros clássicos modernos como Ratatui, WALL.E, e a trilogia Toy Story, uma excepção que confirma a regra das sequelas, e que, discutivelmente, é uma das únicas trilogias da história do cinema em que os filmes são cada vez melhores. Com Inside Out (não vou usar o estúpido título português), a Pixar volta a criar uma pérola, ultrapassando as expectativas, pulverizando-as – e à concorrência – enquanto sobe com elegância até à estratosfera da inventividade e prova uma vez mais que a criatividade ainda é o maior truque na manga do cinema enquanto entretenimento.
Mesmo o mais empedernido crítico verá criatividade e uma centelha de originalidade em Inside Out, mesmo que certos efeitos, meios e fins sejam clássicos. Acompanhamos a vida de Riley, uma menina pré-adolescente que tem de mudar de cidade com os pais, o que lhe trará alguns problemas, mas, principalmente, acompanhamos a sua vida interior, de uma forma deliciosamente literal, na “sala de controlo” da sua mente, onde cinco emoções personificadas – a Alegria, Tristeza, Repulsa, Medo e Raiva – controlam aquilo que Riley sente. Este dispositivo lembra-nos a antropomorfização da série “Era Uma Vez a Vida” e é extremamente eficaz e divertido, mas o que torna o filme especial é a forma como isso é usado, não só como metáfora para o funcionamento da mente humana (bastante simplificado, claro, mas de outra forma não seria trabalhável), mas como alegoria do crescimento, do fim da infância, materializando-se em destruição, reconstrução e evolução naquele mundo interior. Tudo isto é servido num festim visual com o apuro de sempre, neste caso ainda mais inventivo e necessário, dada a origem, puramente imaginada, daquele outro universo.
Aos poucos, depois da aparente inconsequência inicial – a ideia das emoções personificadas é quase pueril -, começa a formar-se um incrível exemplo das mais universais dores de crescimento, e o filme acaba por ir ganhando cada vez mais precisão e sensibilidade, entre sucessivas referências da psicologia que se tornam literais na jornada de duas emoções, a Alegria e a Tristeza, pela mente de Riley. A forma como o filme se justifica a si mesmo, usando as suas próprias premissas, é sempre entusiasmante.
No final, ficamos com a sensação de termos visto um filme surpreendentemente adulto – mais adulto do que qualquer filme de super-heróis, pelo menos – escondido no meio dos “desenhos animados”, e temos motivos para isso. Na verdade, as crianças poderão compreender o significado do crescimento emocional de Riley, mas não se podem rever da mesma forma que os adultos, porque, simplesmente, ainda terão de passar por isso. Além disso, o filme tem todo um nível lúdico sobre a psicologia que necessita de algumas referências de cultura geral sobre o tema. Talvez seja por isso, para “garantir” o público mais jovem, que o filme tem mais peripécias narrativas e comédia slapstick do que necessitava, mas isso só seria um problema para as atitudes mais macambúzias. Partindo do princípio de que, por um lado, se escapa facilmente ao kitsch da segunda lágrima, e que, por outro, não se é demasiadamente cínico, não há nada para desgostar em Inside Out. Ainda assim, o filme passaria bem sem recorrer tanto a alguns estereótipos de género, mas os gags a que dão origem acabam por ser engraçados, e por isso não é por aí que fica estragado o arranjo (ainda hei-de voltar ao tema da “suspensão da indignação” para a comédia, à semelhança da “suspensão da descrença” para a ficção).
Vista a versão portuguesa, não há nada a apontar no trabalho de dobragem – como vem sendo habitual -, mas também nada se pode dizer sobre a versão original, com um conjunto de actores que promete dar ainda mais cor às personagens. Algo se perde sempre na tradução, e neste caso isso nota-se especialmente bem em certos “trocadilhos” que se perdem – a Tristeza é azul por causa do “blues”, do “feeling blue”, por exemplo, e existe um “comboio do pensamento”, literal, por causa da expressão “train of thought”. Nada a fazer a este respeito, mas não se perde grande coisa. Chega-se a ganhar, aliás, com a utilização da palavra “saudade”, transmitindo na perfeição a mistura de emoções que o filme preconiza, por essa tristeza de hoje só ter sido possível por ter havido a alegria de ontem. E vice-versa, como tão bem é mostrado em Inside Out.
A seguir, viria a puberdade e a adolescência de Riley, e, como se interroga a ingénua Alegria no fim do filme, o que poderia correr mal a partir dos 12 anos? Vindo de quem nos deu as sequelas de Toy Story, pode-se esperar tudo, até um Inside Out 2.
Emanuel Madalena