“Na cozinha, o príncipe de calicatri. O senhor violinista acabou de comer a sopa e descascou uma maçã. Da lâmina da navalha, saiu um fio de casca de maçã que se enrolou, enrolou e que pareceu interminável até ao momento em que acabou. Depois cortou a maçã em cubinhos que enfiou na boca e que lhe formaram ângulos na face. Esta parecia ser a única coisa que acontecia no silêncio. Mas, dentro do príncipe de calicatri e dentro da escrava miriam, fervia um tremor, ora irado, ora brando, uma arma de ar, que era igual dentro dos dois. Um desassossego que dominavam com esforço, para que não lhes tremesse o corpo, para que não começassem a gritar. Um desassossego que era um tremor que o corpo continha, que era um grito que a voz amordaçava. O senhor violinista mastigou o último cubinho de maçã, engoliu-o com um movimento de garganta, levantou-se e saiu. Para o senhor violinista, levantar-se e sair foi natural e fê-lo com a indiferença dos actos naturais. Para o príncipe de calicatri e para a escrava miriam, vê-lo sair foi o início do pânico.”
Uma Casa na Escuridão, José Luís Peixoto