Nem todas as baleias voam
Afonso Cruz
Editora: Companhia das Letras
OPINIÃO: Não sei se existe algum outro autor que me cause uma urgência tão grande de leitura como Afonso Cruz. Não, não lhe chamaria obsessão, mas antes uma necessidade visceral. Há qualquer coisa na escrita de Afonso Cruz que, mesmo variando a temática e o formato (afinal escreve desde livros infantis a enciclopédias, passando pelos romances, em que por vezes não se sabe bem se são para adultos ou crianças, mas que na verdade apenas significa que são para todos), me tocam profundamente. Nem todas as baleias voam, o seu mais recente romance, não é excepção a este toque de midas literário. Aliás, dada a minha recente ligação mais intrínseca à música, raras não foram as vezes em que senti de sobremaneira algumas passagens.
Esta é uma obra que volta a cruzar uma série de géneros: o romance romântico, o toque de thriller com laivos de espionagem, inevitavelmente o romance histórico e, claro, a poesia. Não é fácil falar sobre um livro de Afonso Cruz porque, após terminada a leitura, parece não haver palavras capazes de fazer jus ao que realmente se sentiu durante a leitura. Para não falar na genialidade com que o cruzamento de histórias e o entrelaçar de personagens é feito. Não só dentro do próprio Nem todas as baleias voam, mas também com outras obras suas. Há nomes que poderão ser mais familiares que outros, mas a sensação que dá, a cada nova história, é que toda a obra de Afonso Cruz não passa de uma grande família da qual ainda conhecemos pouquíssimo, mas que sem sombra de dúvidas queremos conhecer por completo.
Gostei da forma como Nem todas as baleias voam me fez voltar a ouvir alguns clássicos do jazz, a forma como me fez sorrir, como me levou as lágrimas aos olhos, como me fez antecipar, em plenos sofrimento por um desfecho trágico, como depois senti algum alívio, como pelo meio fiquei completamente assombrada pela teia que se encontrava escondida até então… Podia ficar aqui por muito mais linhas, mas acima de tudo acho que é um livro que deve ser lido. Que deve sair das prateleiras das livrarias e habitar as mesinhas de cabeceira para depois ganhar uma nova vida na nossa imaginação, para que depois sintam o contributo sensível e brutal com que este livro nos presenteia.
Queria contar-vos sobre a caixinha de sapatos para os doentes terminais. Do quanto nos questionamos o que é que realmente colocaríamos lá. Gostava de vos falar sobre o amor de Erik Gould, inabalável, infinito, tão vivo que toda a sua obra cresce tanto com a intensidade do mesmo como com o sofrimento atroz da ausência. Adorava que conhecessem Dresner e a razão do seu coxear. Oxalá pudéssemos todos ver as emoções tomarem forma e sermos capazes de enfrentar e acarinhar a nossa morte como Tristan. E preparem-se, o Escritor não vai ser nada daquilo que ao início podiam pensar. No fundo, quem me dera que realmente a música resultasse como solução de guerras que só o homem cego teima em perpetuar. Não quero falar-vos mais sobre a vida deste romance, quero que o leiam, quero se transportem para lá, quero que o sintam. Afonso Cruz é, para mim, o mais completo dos escritores portugueses da actualidade.
Genuinamente, acreditavam poder, com este programa, vencer a Guerra Fria, ao evangelizarem uma juventude de Leste que ouvia música erudita mas tinha pouco contacto com outros géneros musicais, especialmente o jazz.
Este facto parece-me uma das ideias mais fantásticas da Humanidade: pretender conquistar o mundo através da música, em vez de, por exemplo, fazer explodir Hiroxima ou invadir o Iraque. A música tem um enorme poder transformador, quase imediato. É uma das poucas artes, senão a única, capaz de nos fazer mexer o corpo, de nos pôr a dançar, de provocar a catarse ou o êxtase. (…) O programa americano pode ter falhado – o Muro só viria a cair muitos anos depois -, mas a esperança que esteve na sua base, ainda que utópica, não deixa de ser maravilhosa: a possibilidade de uma guerra poder terminar num baile em vez da explosão de bomba de hidrogénio.
Sobrevivi a quatro mil toneladas de bombas atiradas contra Dresden, sobrevivi ao Holocausto, sobrevivi ao capital e aos programas de televisão. Sobrevivi. Ou seja, tenho vindo à tona, como uma baleia. Mas a maldade, de alguma maneira aberrante e perversa, é uma espécie de estrume. E a vida, por mais incompreensível que seja na sua génese e no seu cumprimento, nasce disso, da terra, do barro, da lama, da merda, se me permite a expressão, faz-nos medrar, e eu, envergonhado, contido, penso que é a maldade a terra mais fértil para a bondade e que o contacto com o fel faz nascer a coisa mais doce. Acho que todos mudamos em contacto com o mal. É o motor. Sei que é horrível, mas o que fazer? Todos os dias rezo para que o mal não deixe de aparecer na minha vida, ao mesmo tempo que o abomino. Adonai, afastai de mim todo o mal, Adonai, aproximai de mim todo o mal. Quando deixar de o fazer, de sentir a corrupção, quando não detectar o mal à minha volta, mais vale estar morto.
Se Tristan soubesse verbalizar as suas emoções, seria assim: Estou à espera de que a felicidade comece a crescer como os bebés no útero das mãos e que um dia nasça e chore e queira mamar e nós eduquemos a felicidade e a levemos à escola para que saiba ler as letras das nossas veias e fazer contas de multiplicar com a nossa saliva, estou à espera de um beijo daqueles que são dirigidos somente a uma pessoa, e não daqueles que se dão a pensar em alguém que está longe, estou à espera que o dia chegue ao fim e que não comece outro, porque os dias são uma chatice. Mas Tristan não saberia verbalizar as suas emoções, portanto:
– Ia comer primeiro.
(…) eram isso os fantasmas, restos das pessoas que amámos, e a nossa casa ficava assim, repleta de assombrações modernas e antigas, densas e subtis. Tínhamos um protocolo com a memória, tínhamos assinado, juntamente com a dádiva da vida, o compromisso de carregar os mortos no nosso corpo, nos móveis da casa, nas paredes e na luz esmaecida dos candeeiros de estanho e de cobre, e cumpríamos esse contrato com um rigor e uma ética absolutamente notáveis, a ponto de, tantas vezes, chorarmos sem qualquer razão aparente.
PS: Este texto só foi possível escrever não por causa do jazz, mas por causa do novo disco do André Barros – In Between.