A Resistência
Julián Fuks
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: “Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado.”, escreve, logo na primeira linha, Sebastián, narrador deste romance. Como em diversas obras que tematizam a Guerra Suja — o regime de terror inaugurado em 1976 na Argentina —, A resistência envereda pela memória pessoal e nacional.
Sebastién é o filho mais novo, e seu irmão adotado, o primogênito de um casal de psicanalistas argentinos que logo buscarão exílio no Brasil. Os pais conhecem bem as teorias sobre filhos adotados e biológicos (Winnicott, em especial), mas a vida é diferente da bibliografia especializada. Cabe então ao narrador o exame desse passado violento e a reescritura do enredo familiar. O resultado, uma prosa a um só tempo lírica e ensaística, lembra belos filmes platinos como O segredo dos seus olhos.
OPINIÃO: Por algum tempo andei a resistir a esta leitura. Olhava para o livro, ele olhava para mim, mas havia um entendimento qualquer que teimava em não se alinhar. Eu não compreendia muito bem porquê, já que o interesse em lê-lo foi meu. Fui eu que provoquei o nosso encontro para depois nunca chegar realmente a comparecer, até Quinta-feira passada. Terminei-o ontem, mas tivesse havido tempo e tinha-o lido de uma só assentada. A Resistência, de Julián Fuks, é uma obra singular, desprovida de qualquer pretensão, e, talvez por isso mesmo, gigante por si mesma. Consegue, em tão poucas páginas, conter universos emocionais tão diversos, tão sentidos, tão em busca de um qualquer significado, que é impossível ficarmos-lhe indiferente.
Acho que esta leitura vai ser sempre uma experiência muito pessoal. Escrever sobre ela não é fácil, afinal, tal como está escrito a certa altura “cada linha tem um sentido duplo” e essa duplicidade vai ser inerente à experiência e sensibilidade de cada leitor. Cruzei-me com alguns textos sobre o livro e reparei que a impressão com que as várias testemunhas ficaram focavam-se em coisas diferentes, reforçando a opinião que já tinha ao final do livro. Esta história é uma espécie de auto-ficção, em que o escritor cruza acontecimentos reais da sua vida com ficção. O mote é a adopção do irmão do protagonista, mas à medida que avançamos na narrativa, são-nos apresentadas várias preocupações que não só essa.
A forma próxima com que o autor fala com o leitor, fez com que me sentisse a caminhar com ele pelos vários cenários, em bicos dos pés, oscilando na dúvida se devia de facto estar a assistir a episódios tão íntimos, a reflexões tão pessoais. Existe uma partilha tão intensa da dor, do esquecimento, da consciência atormentada pela dúvida, da procura de justificações para as suas acções e para as dos membros da sua família, que quando misturada com os factos históricos da altura, descritos pelo narrador, tudo se torna uma imensa tela cinematográfica que exala uma enorme energia de contenção e exploração pelo desconhecido.
Sei que escrevo meu fracasso. Não sei bem o que escrevo. Vacilo entre um apego incompreensível à realidade – ou aos esparsos despojos de mundo que costumamos chamar de realidade – e uma inexorável disposição fabular, um truque alternativo, a vontade de forjar sentidos que a vida se recusa a dar. Nem com esse duplo artifício alcanço o que pensava desejar. Queria falar do meu irmão, do irmão que emergisse das palavras mesmo que não fosse o irmão real, e, no entanto, resisto a essa proposta a cada página, fujo enquanto posso para a história dos meus pais. Queria tratar do presente, desta perda sensível de contacto, desta distância que surgiu entre nós [irmãos], e em vez disso me alongo nos meandros do passado, de um passado possível onde me distancio e me perco cada vez mais.
Sei que escrevo meu fracasso. Queria escrever um livro que falasse de adoção, um livro com uma questão central, uma questão permente, ignorada por muitos, negligenciada até em autores capitais, mas o que caberia dizer afinal? Que incerta verdade sobre essas vidas que não conheço, marcadas por um ínfimo abandono inaugural, talvez nem mesmo abandono, talvez mera contingência pessoal, fortuita como outras, arbitrária como outras, semelhantes a que mais?
(…)Com este livro não serei capaz de tirá-lo [ao irmão] do quarto – e como poderia, se para escrevê-lo eu mesmo me encerrei? Agora não sei mais por onde ir. Agora paraliso diante das letras e não sei quais escolher. Agora sim, por um instante, posso sentir: queria que meu irmão estivesse aqui, a pousar sua mão sobre minha nuca, a apertar o meu pescoço com os seus dedos alternados, tão suaves, tão sutis, a indicar a direcção que devo seguir.
Reconheci-me muito na temperança, na hesitação, e ao mesmo tempo no avanço determinado que Sebastian manteve na convicção de que este livro tinha que ser escrito. Julián Fuks é alguém que merece ser lido, que transporta consigo uma riqueza sublime no que à comunicação com o leitor diz respeito. A humanidade de A Resistência reforça um vínculo necessário e urgente nos romances actuais. Acho que cada vez mais o leitor procura um reconhecimento pessoal, íntimo, nas páginas que lê, ainda mais do que um final feliz ou uma qualquer fantasia dada como improvável na vida real. E é fácil harmonizarmo-nos com Fuks. Recomendo.
PS: A Resistência ganhou o prémio de Livro de Ficção do Ano. no Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira.