Paredes de Coura ’08
Tenho um certo problema com mitos. Cristãos, judaicos, egípcios ou simplesmente festivaleiros; a primeira coisa que faço, sempre que me educam em relação a um novo mito, é agir como São Tomé: ver para crer. Daí que abomine veementemente o mito que se criou em relação a Paredes de Coura como o melhor festival português, como se a um festival de música pudesse ser atribuída uma medida arbitrária que não focada no seu cartaz, e sempre no seu cartaz. Nesse aspecto, todos os festivais de música portugueses são excelentes – já que todos têm pelo menos um nome que vale mesmo a pena observar de perto. Campos, rios, calor, chuva, piscinas ou falta delas e essa coisa de nome ambiente: tudo isso é secundário.
Daí ter também um certo problema com Coura, porque mais que pela música, vai-se pelo verdadeiro acampamento cigano em que aquela pacata vila se torna durante uma semana e poucochinho. Nada contra ciganos, claro. Contra pessoas que na realidade não gostam de música e vão pelo convívio, aí tenho tudo. Porque são estas o mesmo tipo de pessoas que se recusam a conviver no resto do ano, quando um gajo não quer fazer mais que não ir beber um café. Ah, mas não se passa nada, bramem, mas é aí que está o cerne da questão: é precisamente por não se passar nada que podíamos ir beber um café, sem precisar de levar a puta de uma tenda, umas panelas e uma botija da Campingaz. Ir “pelo ambiente” é para mim a coisa mais estúpida que se pode fazer em relação a um festival de música. Mas, também, eu gosto demasiado de música para a sujeitar a ser uma qualquer espécie de banda-sonora do elevador que é a bebedeira.
Falava de Coura, porque foi em Coura que me estreei a acampar num festival de verão, no ido ano de 2008. Cartaz: Sex Pistols, Editors, Primal Scream, Mars Volta e os gigantes Thievery Corporation, a banda que me levou a fazer mais de 400 km entre autocarros, ainda que sim, eu sei, sejam só os Thievery Corporation. Na semana antes, dediquei-me a estudar bem a engenharia necessária para montar a tenda, já que iria sozinho e não era daquelas que se lançam ao ar e ficam prontas a utilizar (depois fui esperto e comprei uma dessas, mas não tenciono voltar a utilizá-la. Acampar é merda). Guardei certas e determinadas substâncias já enroladas dentro de um maço de tabaco. Aluguei, na biblioteca, um exemplar de Os Cus de Judas, livro de António Lobo Antunes, para me entreter nas horas mortas. Abalei de manhã cedo, que o passe geral – oferecido por uma amiga – vinha com a viagem incluída.
E foi então que se abateu Coura sobre mim. Não Coura, mas um dilúvio; a chuva, aliada ao facto de já não haver espaço no campismo – pelo menos um espaço que fosse minimamente perto do recinto. Optei por uma clareira perdida, primeiro, onde pernoitei antes do início do festival. Mudei-me depois para o meio da lama e do nojo, junto às roulotes para ricos. Seis horas depois, estava a tentar superar o alagamento da minha tenda com os poucos rolos de papel higiénico que havia levado comigo. É uma bela maneira de começar um festival, não é? Mas é assim que se constroem mitos, da mesma forma que é assim que se passa a odiar, para sempre, um festival de música. Eu preferi a segunda opção porque já guardo tanto ódio dentro de mim que uma raivazinha a mais não me incomoda.
Não pensem que escrevo isto para troçar do mito que é Coura; estou-me nas tintas para a vossa fé. Até porque, nessa edição, houve um outro mito que se auto-destruiu de forma fantástica: o dos Sex Pistols, que chegaram a Portugal com trinta anos de atraso e que arrastaram consigo uma multidão de punks da velha guarda e apenas uma página de história. A boys band mais famosa dos anos 70 foi ao Minho para ganhar dinheiro à custa deles e do tipo gordinho que, a meu lado, desatou a chorar ainda antes do concerto. Vou ver Deus, clamava ele, com a mesma fúria de um pastorinho em 1917. Uma fúria que quase o levou a partir para a pancadaria com dois outros tipos que envergavam t-shirts dos Ramones e troçavam da ideia de ver Sex Pistols em 2008. Faz como o Joey Ramone, filho da puta… Claro que, na “Bodies” e apoiado nas grades, tive de saltar agarrado ao gordinho. Que se foda. É rock n’ roll.
Foram-se passando os dias, lendo BLITZs (quem diria que, anos depois…) e viajando até ao Intermarché para adquirir bens essenciais, tendo inclusive ensinado uma estrangeirinha onde ficava o Intermarché sem que ela me agradecesse como eu, aos vinte e poucos, desejava. Enfim. Lembro-me dos Primal Scream a tocar a “Rocks” e de um brit a meu lado tentar meter conversa comigo, sem desconfiar dos meus níveis elevados de anti-sociabilidade. Lembro-me de dar uso ao supracitado maço de tabaco durante o concerto dos Mars Volta e de o ter achado incrível (takvez por isso). Lembro-me da “Bad Timing” dos dEUS, com as luzes no palco a cegarem-me os olhos, ela que ainda hoje é a única malha de jeito que os belgas fizeram…
Valeu o festival pelos Thievery Corporation e por tudo o que se passou nesse dia. À tarde, já nas grades (todos fomos/somos mongos), travei amizades com um grupo do norte que quase me insultou quando eu disse que uma das bandas que tinha vindo ver eram os Editors. Em retrospectiva, eles tinham razão; se eu pudesse viajar ao passado daria um calduço em mim mesmo. A sério, meu? Os Editors? No seio do grupo, duas moças simpáticas que envergavam um cartaz no qual pediam a setlist, guardado religiosamente para o concerto dos Biffy Clyro. Foi dos piores concertos que alguma vez vi na vida e as miúdas quase andavam à porrada entre si pelo papelinho mágico.
The Cosmic Game era, à altura – e continua a ser, a espaços – o meu álbum preferido. Também eu levei um cartaz: 3.08.08, a Thievery number, em referência à malha e à data em que actuaram, com o baterista a apontar na minha direcção e sorrindo. Este gajo sabe…, terá pensado. E há registos disso, claro… A dupla electrónica/chill deu um concerto memorável, quanto mais não seja porque acabei por fanar o cartaz às raparigas, o que me valeu o reconhecimento por parte dos Thievery Corporation; a meio do concerto, um segurança chega-se junto a mim e entrega-me uma resma de folhas, todas elas o alinhamento. Guardei uma e distribuí o resto pelo povo em volta, tal era a felicidade que sentia naquele momento. Soube, anos mais tarde, que uma dessas pessoas era o Amílcar, que entretanto a perdeu – mas ele também não curte da banda. Se calhar foi ele que me disse precisamente isso no final: só estamos aqui para curtir, fazendo com que eu me desmanchasse a rir.
Acabaria por voltar para casa com sentimentos mistos. Primeiro porque fiquei horas à espera do autocarro que me levaria de volta para Lisboa e posteriormente Alverca, perdendo estupidamente o concerto de Caribou porque tinha medo de não conseguir voltar na hora prevista; segundo porque o meu corpo era feito de sujidade e ainda tive de esperar duas horas para que a minha mãe saísse do trabalho, já que eu me tinha esquecido de levar a chave; terceiro, porque o filho da puta do livro do Lobo Antunes era um asco e ele um escritor mais sobrevalorizado que a Zooey Deschanel; quarto, porque na realidade me havia divertido imenso – só não o sabia. Mas Coura só voltaria ao meu radar anos mais tarde…
Paulo André Cecílio