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Jazz em Agosto 2017: High Risk – Ritmo & experimentalismo de mãos dadas
O concerto de encerramento do Jazz em Agosto, High Risk, conquistou a plateia do início ao fim. Um som que alia os ritmos urbanos contemporâneos à improvisação e experimentalismo que a electrónica foi permitindo ao longo dos anos. Uma aposta ganha.
João Morales
Durante algum tempo, quando se falava dos improvisadores mais radicais, melodia, harmonia, ritmo, eram conceitos quase proibitivos, ostracizados, e vistos como incompatíveis. Há uma geração de músicos que está, sabiamente, a ultrapassar esse estigma e a criar pontes sólidas entre algumas sonoridades mais acessíveis – e difundidas – e a sua inerente capacidade de as subverter, de forma mais ou menos subtil.
Dave Douglas (n. EUA; 1963) apresentou-se a encerrar o Jazz em Agosto 2017, na Fundação Calouste Gulbenkian, com o seu projecto High Risk, que teve origem no CD homónimo de 2015, embora a formação que veio a Lisboa seja já um pouco diferente. Douglas tem um percurso variado e óptimas companhias, como os Massada, de John Zorn, Mark Feldman, Uri Caine, Jim Black (com quem criou The Tinny Bell Trio) ou Chris Speed. Em Lisboa, o trio que o acompanhou é de uma geração posterior, mas a notória satisfação com que os apresentou não foi em nada gorada, defendendo em conjunto uma sonoridade carismática e capaz de prender a vasta audiência do primeiro ao último momento do concerto.
Os primeiros instantes poderiam fazer-nos crer num ambiente apenas devedor de algum Cool Jazz, com o trompete assente num discreto tapete sonoro. Contudo, rapidamente se desfizeram equívocos. Se os nomes de Miles Davis (numa fase já de franca confraternização com a electricidade) e Jon Hassell foram algumas vezes referidos para situar as influências da linguagem aqui explorada, será também de justiça citar os Material, de Bill Laswell, ou o japonês Terumasa Hino e a suas experiências com o trompete apetrechado de pedais e outra electrónica. E, em certas partes da noite, até mesmo Prince.
Rafiq Bhatia (guitarrista de ascendência indiana, n. 1987) mostrou-se eficaz nas manobras electrónicas, com alguns ares de Arto Lindsay em certas passagens, evocando sonoridades de algum glam Rock (Adrian Bellew ou Phil Manzanera) em outras. O seu colega nos Son Lux, o baterista Ian Chang (nascido em Hong Kong, há muito sedeado em Brooklyn), esteve também muitíssimo bem, contrapondo o seu ritmo ao trompete de Douglas, actualizando a herança de um Billy Cobham inicial (Spectrum; Crosswinds) e ajudando a estender as possibilidades geradas pelo seminal Jazz Rock. Uma tarola electrónica acrescida à bateria convencional ajudou à tarefa.
Jonathan Maron cumpriu igualmente, mantendo-se no espírito do colectivo, amparando as intervenções dos companheiros, assegurando o balanço desta proposta. Apesar de alguma experiência (foi um dos fundadores do Groove Collective, projecto que agrega sonoridades como o Jazz, o Funky ou os ritmos afro-cubanos) será talvez o mais tímido (musicalmente falando) do quarteto, não se atrevendo a voos demasiados altos quando foi a sua vez de solar.
A fusão entre um hip hop experimental, os ritmos alcançados com auxílio electrónico, a expressividade do sopro de Douglas e toda a envolvência dos restantes músicos, resultou em pleno. As partes mais calmas faziam acreditar numa banda sonora para imagens por inventar, as mais aguerridas transfiguraram a essência da Pop e do Jazz, numa releitura das gramáticas sonoras disponíveis para quem se predispõe a olhar com novos olhos a herança acumulada ao longo de um século XX que assistiu à introdução da máquina na música. Quase uma metáfora do que se passa hoje com a Inteligência Artificial – veremos o que se dirá da música daqui por cem anos, com essa (agora) novidade instalada na realidade humana.
E é extremamente simbólico que tenha sido este o concerto escolhido por Rui Neves para encerrar o Jazz em Agosto 2017, quase em espelho com um outro, que abriu o festival. Rui Eduardo Paes, na folha de sala deste concerto realça como “há um eletro-jazz a emergir e temos aqui, conjuntamente com os Sélébéyone, a sua guarda-avançada”. O Jazz está a recuperar o gosto pelo ritmo e, como sempre fez, a apropriar-se das mais recentes formas de expressão musical para criar novas realidades.
Nas suas intervenções, Douglas deixou bem patentes algumas preocupações com o presente e futuro do Planeta Terra e da Humanidade em geral, reforçando assim o nome do projecto e deixando algumas pistas sobre quais podem ser as manifestações do High Risk que lhe dá o nome. E a meio da noite, Dave Douglas realçou o facto de os quatro músicos serem americanos, pelo que, sentiu necessidade de deixar um pedido de desculpas: “sorry about our President…”