Entrevista originalmente publicada no Música em DX: https://www.musicaemdx.pt/2018/02/20/entrevista-legendary-tigerman/
É já nesta Quinta-feira, dia 22 de Fevereiro, que The Legendary Tigerman começa a tour portuguesa de “MISFIT”, disco lançado mundialmente em Janeiro pela Sony Music. Com uma carreira a solo que leva quase duas décadas, falámos um pouco com Paulo Furtado sobre este seu mais recente trabalho que acaba por marcar uma nova fase da carreira do Lendário Homem-Tigre.
Misfit é um disco diferente do anterior por várias razões. Do conhecimento público vem o facto de pela primeira vez não teres trabalhado completamente sozinho nele, o que só de si acaba por abarcar novas experiências. Sentes que Misfit marca uma nova etapa de The Legendary Tigerman?
Sim, claramente. É muito relevante para o som do disco e para o projecto o facto de neste momento isto ser mais uma banda do que um one-man-band, e desde o início que pensei em compor para esta formação, e ter isso em conta na escolha das músicas. O facto de MISFIT ser parte de um projecto maior, que também é cinema e fotografia, também o distingue de tudo o que está para trás.
Pela primeira vez em quase vinte anos, The Legendary Tigerman entra então em estúdio para gravar acompanhado (com Paulo Sagadães e João Cabrita). O que é que te motivou a levá-los para estúdio? Desde True que tocam juntos. Essa experiência foi preponderante?
Bem, esta transformação não foi exactamente pensada, foi acontecendo. Primeiro entrou o Sega, e durante algum tempo tocámos com as duas baterias em palco e havia uma mistura do one-man-band com a bateria, e passado uns tempos o Sega estava a tocar o concerto todo, e de repente aquilo fazia sentido. O Cabrita também começou assim, como convidado em algumas canções em concertos especiais, porque ele tinha escrito arranjos para o True, e de repente havia uma linguagem musical nova e fresca, que tinha sido criada ao vivo, e para mim fazia sentido tentar compor para este formato. Foi isso que veio a acontecer no MISFIT.
Misfit, o desajustado. Não é segredo para ninguém, dado que já o disseste publicamente, que este foi um sentimento que te acompanhou ao longo do teu crescimento e até mesmo enquanto adulto. Sentes-te mais perto de ti mesmo neste disco do que nos cinco anteriores?
Sim, sempre senti isso, na realidade, desde muito novo, e de repente também me pacifiquei com esse sentimento, porque é fixe e bom ser desajustado num mundo que nem sempre é o mais correcto e interessante. É bom fazer coisas que nem toda a gente goste, não preciso que muita gente goste de mim, alguns até prefiro que não gostem!
Claro que há um preço a pagar por isso, mas na realidade, não creio que conseguisse fazer as coisas de outra maneira. Mas sempre fui muito honesto em todos os discos que fiz, sinto-me muito próximo de todos, eram exactamente os disco que queria fazer em cada um dos momentos.
Numa altura em que se discute “a morte do rock’n’roll” para outros géneros musicais, tens uma faixa que se chama “Fix of Rock’n’Roll”. É alguma espécie de statement em relação ao assunto ou mera coincidência?
Não é coincidência, claro. Como não é coincidência que o disco seja de alguma forma mais pesado que os anteriores, tive vontade de fazer um disco de rock´n´roll neste momento, e com esta formação. Em todas as décadas se fala da morte do Rock´n´Roll, mas acho que ainda não é desta. Acho que isso nunca irá acontecer, há-de sempre haver um puto a pegar numa guitarra eléctrica e a sentir esse energia, que é muito diferente de tudo o resto.
Para a escrita das letras em que é que vais buscar referências? À tua vida, às tuas experiências ou também tens, por exemplo, alguns autores literários nos quais também te inspiras?
Neste disco quis ser mais influenciado pela estrada e pelo universo que criei para o Fade into Nothing, o filme que criei com o Pedro Maia e a Rita Lino, e que no fundo foi o início de todos este processo. Tentei escrever muito pelo olhar do personagem principal do filme, a quem dou corpo, chamado MISFIT, mas claro que a experiência pessoal e a vivência acabam por estar sempre presentes na escrita das canções. E, no fundo, toda a arte com que contacto me influencia, seja um quadro, um filme, um livro. Acho que há sempre qualquer coisa que te vai abrindo portas e janelas na pessoa que és, e isso acaba por influenciar a tua arte, também.
Como disseste, Misfit foi também um trabalho que, por consequência, acabou por destacar outras paixões tuas: o cinema e a fotografia. Ao mesmo tempo que surgia “Fade Into Nothing”, nascia também a composição de “Misfit”. De que forma é que estas experiências ganharam vida e como é que se reflectem verdadeiramente no disco?
Bem, já respondi a uma parte desta questão, creio, mas de facto forcei-me a escrever por outros olhos, e tentar fazê-lo de uma maneira rápida e intuitiva, e na realidade o grosso do disco foi escrito diariamente entre Los Angeles e Death Valley, durante a rodagem do filme. Há muita coisa cruzada entre o filme e o disco, muitas ideias que muitas vezes são desenvolvidas no diário, ou podem ter uma justificação nas canções. Há muitas pistas para isso no disco e no filme, para quem as queira procurar. Para mim era importante precipitar uma escrita mais rápida e intuitiva, menos reflectida.
Gravar num estúdio em pleno deserto reforça um bocadinho a ideia do Misfit, havendo este isolamento bastante literal. Existe todo este imaginário que acaba por se tornar muito gráfico enquanto ouvimos o disco. O que é que te impulsionou a ir gravar para um estúdio no deserto (para além de, obviamente, o estúdio ser excelente)?
Por um lado, queria muito gravar no Rancho, desde que ouvi as primeiras Desert Sessions, e quando visitei o estúdio a primeira vez senti uma energia muito especial, senti que aquele era um local muito inspirador. Por outro lado, queria muito estar fora da minha zona de conforto e dos instrumentos e sons que conheço bem, e também que precisávamos desse isolamento, como músicos que pela primeira vez estavam a gravar um disco. A escolha dos instrumentos para os arranjos finais ou certas sonoridades das guitarras, por exemplo, foram decisões tomadas lá, com o que estava disponível. Creio que tudo isto era efectivamente necessário para chegarmos à sonoridade de MISFIT. E tendo escrito o disco naquela zona, e sendo o deserto uma influência tão grande neste albúm, fazia todo o sentido.
Passado todo este tempo, que distância emocional, ou até fictícia, consideras haver entre o alterego The Legendary Tigerman e a pessoa Paulo Furtado? Aliás, será que existe sequer, hoje em dia, alguma diferença entre os dois?
Creio que essa diferença se foi acentuando, ao longo dos anos, na realidade. Talvez no início não houvesse tantas diferenças assim entre mim e a persona de palco, talvez estivéssemos os dois sempre ligados e a mil. Hoje em dia crescemos, ambos, mas de maneiras muito diferentes, creio. Permitiu-me a mim viver melhor e fazer mais coisas, creio, e permitiu-me também crescer muito em palco e disco, como Tigerman.
Sentes que com o tempo fica menos difícil expressares-te e dares forma às tuas emoções através da tua música?
De certo modo acho que sim, apesar de eu fazer um grande esforço para não me repetir e tentar reformular o modo como faço música, de disco para disco. Quando chega o momento de fazer um disco ou fazer um concerto, não creio que as coisas sejam verdadeiramente mais fáceis, há uma grande exigência, sempre.
Voltando um pouco atrás no tempo, como é que alguém tímido e com esse sentimento de não pertença ganha coragem de subir ao palco e fazer deste universo – em que acabas sempre por te expor – a sua vida?
Não te sei explicar exactamente como isso aconteceu. Acho que no fundo fui recebendo mais do que perdia, no sentido que foi um modo de poder continuar a desenquadrar-me, ainda que inserido na sociedade, e consegui exprimir coisas que provavelmente não conseguiria exprimir de outro modo. E a energia que sentes ao fazer um concerto de Rock´n´roll, é algo extraordinário. Quando tudo corre bem num concerto, quando consegues ligar-te ao público e que ele se ligue a ti, naquele momento perfeito de partilha e comunhão, isso é das coisas mais bonitas que pode acontecer, para mim. Não acontece sempre, mas é uma coisa que procuro sempre, e creio que estar em palco é algo de muito, muito especial, à qual me fui afeiçoando cada vez mais e ganhando cada vez mais respeito.
Tendo sido o desenho o teu primeiro talento natural, de que forma é que este se foi mantendo presente na tua vida?
Curiosamente, hoje em dia só desenho nas férias. É a única coisa que realmente me acalma e relaxa. Desenho plantas. Talvez um dia volte a desenhar e pintar outras coisas.
Sentes que o cinema e a fotografia se vão tornar uma parte mais constante da tua vida profissional no futuro?
Sinto que já são, mas muita vezes opto por deixar isso numa segunda linha, ou passa um pouco mais despercebido do grande público.
Para além do cinema e da fotografia, recentemente também produziste aquele que será o disco a solo de Sean Riley, que vai abrir os teus concertos na tour de Misfit portuguesa. Já no ano passado também tinhas assumido a produção de “Lucifer”, disco dos The Poppers. Qual é o maior contraste entre ser músico e produtor?
No fundo continuas a ser músico, enquanto produtor. A grande diferença é que tens um olhar externo em relação às canções, consegues ter um olhar mais crítico e vislumbrar caminhos de produção mais facilmente, porque não são as tuas canções, são canções de outras pessoas, são escritas passando por processos emocionais que muitas vezes influenciam o modo como são tocadas e arranjadas. Como produtor, tenho distância em relação a isso, e consigo perceber mais facilmente o que a canção ou o disco precisam. Por mais próximo que esteja, é um olhar de fora. No cinema é a mesma coisa, quem está atrás da câmara (com todas as exceções, porque não acredito em regras e há sempre mil modos de fazer as coisas) não deve estar a montar um filme, porque há uma memória e uma ideia do dia de rodagem, por exemplo. Imagina que houve uma cena super difícil de filmar, mas que no final consegues. Alguém que não saiba disso terá um olhar muito mais pragmático em relação a ela. Voltando à música, esse olhar mais distanciado também ajuda a reconhecer as mais valias de cada um também, bem como das canções, e tentar ao máximo ajudar a maximizar tudo isso. No fundo, todas as experiências que vais tendo te vão fazendo crescer como músico e produtor.
Tendo uma estética muito própria, como é que te consegues abstrair dela quando trabalhas no papel de produtor com outros artistas?
Bem, nunca me abstraio totalmente da minha estética, creio. Qualquer autor que tenha uma assinatura e visão não pode abstrair da sua estética, e acho que isso também é claro na cabeça de quem me procura. No fundo o que acontece é que coloco a minha experiência e essa estética ao serviço de outras pessoas e de outras visões. Mas antes de qualquer trabalho desse género, ou mesmo quando faço bandas sonoras de cinema ou teatro, e faço muitas e muitas vezes, e bastante diferentes do que as pessoas esperam do ponto de vista sonoro, tento explicar tudo isto ao máximo, e perceber se faz realmente sentido trabalharmos juntos. Às vezes, pura e simplesmente, não faz. E é importante perceber isso antes.
Enquanto artista tens uma relação muito especial com França. A tour de Misfit começou precisamente por lá e as pessoas adoram-te. Como é que surge esse arrebatamento com França?
Não sei, surgiu de uma maneira natural, creio, sempre houve gente que se interessou por aquilo que faço, por lá. E creio que é um país que sempre gostou de Blues e Rock´n´Roll.
Quinta-feira começa a tour por Portugal no Lux. Nos teus concertos a temperatura costuma subir muito rapidamente. O que é que te dá mais prazer durante um concerto em relação a ti em palco e à reacção do público?
Quando num pequenino momento, parece que somos um só. É um sentimento incrível.
Agenda concertos Portugal
22 de Fevereiro – Lux Frágil – Lisboa
2 de Março – Porto – Hard Club
9 de Março – Arcos de Valdevez – Sons de Vez
10 de Março – Aveiro – Teatro Aveirense
15 de Março – Évora – Teatro Municipal Garcia de Resende
16 de Março – Castelo Branco – Teatro Avenida
17 de Março – Alcobaça – Cine-Teatro de Alcobaça João D’Oliva Monteiro
23 de Março – Tondela – ACERT
24 de Março – Braga – Theatro Circo
29 de Março – Coimbra – TAGV
Fotografia – Rita Lino | The Legendary Tigerman