Recensão: O Corpo Dela e Outras Partes, de Carmen Maria Machado

O Corpo Dela e Outras Partes

Carmen Maria Machado (tradução de Tânia Ganho)

Alfaguara

288 págs

18,90 euros

A escrita de Carmen Maria Machado clama a liberdade e o orgulho de ser mulher, com maiúscula e autonomia. Com diversos artigos e alguns contos já publicados, este seu livro de estreia apropria-se de um ambiente devedor do Fantástico, por vezes quase próximo do horror, para integrar uma incursão pela dimensão feminina, com acutilância e despudor. Abundam ejaculações, dedos vagina adentro, sexos hirtos, penetrações afogueadas, línguas desabridas e outros condimentos similares.

Com ensaios, contos e outros textos publicados em jornais e revistas como The New Yorker, New York Times, Granta, Tin House, VQR, McSweeney’s Quarterly Concern, The Believer, Guernica, entre outros, é Mestre pela Iowa Writers’ Workshop e escritora residente da Universidade da Pensilvânia. Este é o seu primeiro livro, lançado originalmente 2017 e traduzido em Portugal no ano seguinte. Apesar de haver algumas linhas de força constantes e inumeráveis, isso não impede diferentes experiências, ampliando as possibilidades de entendimento semântico de acordo com a profusão de técnicas aplicadas na vontade de contar uma história e, entenda-se, ostentar pontos de vista que estão tão alicerçados na ética como na estética. 

O primeiro conto, “O Ponto do Marido”, deixa antever a simbiose que embala estas narrativas. Inspirado num conto tradicional, mantem o fundo moral que as narrativas ancestrais habitualmente transportam, mas associa-lhe rapidamente uma linguagem sem receios do vernáculo e uma componente simbólica permanente. A narradora vai intercalando a sua história com outras, num encadeamento que evoca As Mil e uma Noites, mas também o Decameron, de Boccaccio, numa versão intensamente devedora do erotismo e ambientes enegrecidos.

No cerne de tudo, um segredo fatal: “O nosso filho tem doze anos. Interroga-me sobre a fita, à queima-roupa. Digo-lhe que somos todos diferentes e que, por vezes, não se devem fazer perguntas”.

“Inventário” traça rápidos quadros sexuais, explorando possibilidades, enquanto “Mães” assenta numa relação entre duas mulheres, que geram um filho. Novamente, há um carácter de perigosidade embebido na narrativa: “ «Adoro-te, bebé, e não te vou magoar», mas a primeira coisa é uma mentira e a segunda poderá ser uma mentira, mas não tenho a certeza”. A magnífica descrição do interior do frigorífico assenta na enumeração, a vertigem das listas (citando um título de Umberto Eco), utilizada num sentido quase cinematográfico e psicanalítico, que nos desafia a interpretar e conjugar.  

O título de um dos contos, “As mulheres de verdade têm corpo”, acaba por ter dupla significação. A história gira em torno de uma espécie de epidemia, mulheres que se tornam etéreas, prisioneiras que se imiscuem nas roupas e aí sobrevivem em sofrimento. Mas é fácil – e tentador – entender a frase como um verdadeiro manifesto, num livro em que o sexo é afirmação de identidade, de liberdade, num constante misticismo suportado pela glorificação do prazer. Por vezes, surge a dignidade da igualdade de direitos, dissimulada de sarcasmo: “fico sempre surpreendida com a maneira poética como os rapazes conseguem descrever uma foda”.

Este livro foi finalista de vários galardões: National Book Award,  Kirkus Prize, LA Times Book Prize, Art Seidenbaum Award for First Fiction, World Fantasy Award, Dylan Thomas Prize, Brooklyn Public Library Literature Prize, PEN/Robert W. Bingham Prize for Debut Fiction. E venceu outros: Bard Fiction Prize, Lambda Literary Award for Lesbian Fiction, Shirley Jackson Award e National Book Critics Circle’s John Leonard Prize. Já este ano, o New York Times listou-o entre os “15 livros inesquecíveis da autoria de mulheres, que estão a mudar a forma como lemos e escrevemos ficção no séc. XXI”

Tem por cenário a Garganta do Diabo, o conto “A residente”. Mantendo alguns elementos dos restantes, espraia-se pelos domínios da meta-literatura e questiona a dimensão da inspiração na construção da própria história. Signo e significado são colocados em confronto, buscando uma síntese distinta: “Lembrei-me, pela enésima vez, da ideia de desfamiliarização de Victor Chklovski, de nos aproximarmos muito de uma coisa e observarmos tão devagar, que ela começa a distorcer-se, a alterar-se e a adquirir um significado novo”. A páginas tantas, a narradora parece dar voz à autora: “É um direito meu viver dentro da minha própria cabeça”.

João Morales

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on pinterest
Share on whatsapp
Subscrever
Notificar-me de
guest

0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
  • Sobre

    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

    Subscritores do blog

    Recebe notificação dos novos conteúdos e partilhas exclusivas. Faz parte da nossa Comunidade!

    Categorias do Blog

    Leituras da Sofia

    Apneia
    tagged: currently-reading
    A Curse of Roses
    tagged: currently-reading

    goodreads.com

    2022 Reading Challenge

    2022 Reading Challenge
    Sofia has read 7 books toward her goal of 24 books.
    hide