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Teatro Tivoli BBVA, 1 de Novembro de 2018. Dia de todos os Santos e dia também de um dos melhores concertos a que alguma vez assisti. Religiões à parte, a verdade é que a noite teve mesmo algo de verdadeiramente sobrenatural. Pela sua beleza, pela sua força, por um conjugar de factores que ainda agora, enquanto escrevo este texto, me faz arrepiar novamente. Anna von Hausswolff, e a banda que a acompanhou, proporcionou-nos um espectáculo irrepreensível e absolutamente memorável.
Com uma pontualidade louvável, as luzes baixaram e os músicos entraram em palco. Anna sobe em último ao seu estrado e as primeiras notas de “The Truth, The Glow, The Fall” fazem-se ouvir. Na escuridão absoluta, sente-se a expectativa entre o público. A sua voz ainda não ecoou, mas já se sente uma energia latente no ar. É então que a voz da artista sueca rompe pelo meio do órgão. Se em Dead Magic esta é já uma canção emotiva, ao vivo, ao mesmo tempo que a ouvimos a iniciar a música com a estrofe “After the fall”, somos nós, espectadores, que nos sentimos em plena queda livre.
A voz de Anna Von Hausswolff parece-nos chegada de outro mundo e não há disco que nos prepare para o impacto que é presenciá-la directamente. Com apenas um foco de luz ascendente, a nossa atenção centrou-se toda nos contornos da artista e no som da sua voz. Arrepiante.
Assim que se começaram a juntar os restantes instrumentos (duas guitarras, um baixo, bateria, sintetizadores e precursão), tornou-se claro que todo o concerto seria tocado da maneira mais orgânica possível, exacerbando as texturas sonoras que se entranhavam em nós, qual segunda pele. Foi como entrar num universo encantado em que tempo e espaço se diluíram, desaparecendo tudo à nossa volta e tornando a experiência sensorialmente arrebatadora. Foi estonteante como Anna von Hausswolff jogou com a sua voz – do tom angelical ao tom que parecia provir das vísceras do universo. E tudo isto só com a primeira canção. Ainda faltavam mais seis, fora o encore, e eu já me sentia atropelada emocionalmente.
Com “Ugly and Vengeful”, começou por se sentir uma aura quase fantasmagórica que acabou a ser rasgada pela força da bateria, piano e distorções, alinhando-se à intensidade do ritmo os strobes bem posicionados. Cada tema tomou forma de epopeia mitológica. Apesar de ser uma aficcionada por diversas mitologias, escapa-me se existe alguma deusa nórdica da guerra. No entanto, não será difícil visualizar e imaginar Anna von Hausswolff a comandar uma série de batalhas, quanto mais não seja aquelas que travamos dentro de nós mesmos. Se há poder que a sua música tem é a de expiarmos o que nos perturba.
Seguiu-se “The Marble Eye” que acabou por ser uma espécie de interlúdio que mais uma vez destacou a presença de Anna von Hausswolff em palco. Holofote em si, banda parada e a sua voz a preenchia cada canto do Tivoli. Quando chega a vez de “Källans återuppståndelse” já constatámos a versatilidade e o potencial infinito da artista sueca, tanto em termos vocais como sonoros.
Há que enaltecer e destacar os músicos que a acompanham. Nota-se a sintonia e o equilíbrio perfeito entre todos. Dadas as várias partes contrastantes em termos de ritmos e acordes que cada tema consegue ter, a sua execução tão brilhante só é possível por haver esta cumplicidade. É incrível como, em conjunto, conseguem passar de uma euforia gritante a uma harmonia desarmante. Acima de tudo, o que senti, mesmo nas interacções com o público, principalmente no pequeno encore, foi uma humildade admirável. Mas já lá vamos.
De seguida, chegou um dos momentos mais esperados da noite com “The Mysterious Vannishing of Electra”. Aqui constatei uma surpresa. Embora na versão áudio este seja um tema que claramente se destaca, a verdade é que ao vivo essa discrepância não se notou, no sentido em que todos os temas foram tocados com tanto poder que as preferências acabaram todas diluídas. Não obstante, poder sentir em primeira mão todas as vibrações viscerais da voz da artista foi, mais uma vez, um momento paralisante de fascínio e contemplação.
Seguiram-se dois temas do disco anterior – “Pomperipossa” e “Come Wander with Me/Deliverance” – que fecharam o concerto tal como merecido, de forma majestosa. Para além dos músicos magníficos que já mencionei, há que mencionar também não só a qualidade do som como a qualidade do jogo de luzes. Em relação a este último, foi tudo pensado ao pormenor, dando outra dimensão ao concerto. Também a postura de Anna von Haussowlff ao longo mesmo foi poderosa, obrigando-me a invocar novamente a imagética espiritual e mitológica. Foi este o tipo de impacto que o concerto teve em mim, quase como algo surreal.
O encore foi naturalmente exigido de pé e com o aplauso merecido. Ao regressarem ao palco, o microfone foi ajustado de forma a poder percorrer uma distância considerável e logo a vimos descer ao público. Com um tema que nunca antes tinha ouvido, Anna von Haussowlff percorreu o corredor central do teatro à medida que ia cantando com o seu tom de voz angelical, encarando o público olhos nos olhos. Apresentou a sua banda e, chegada à mesa de som, também apresentou o seu técnico de som e de luzes. São raros os artistas com este nível de pormenor e com esta gratidão pulsante pelo que lhes rodeiam. Foi impossível o público e companheiros não se sentirem directamente acarinhados pela artista.
O concerto durou perto de hora e meia e arrisco dizer que nunca, em quase duas décadas de concertos, senti uma catarse tão continua e constante. Inesquecível.