Cor
De mochila às costas, com um bloco de notas e uma caneta na mão, sentado dentro da carruagem em movimento, olhei para o cartaz que ilustrava a rede ferroviária. Sentia-me numa encruzilhada. Como é que era possível? Tinha planeado tudo tão bem. Pior do que isso, não comprara bilhete para aquela viagem. O que iria acontecer se aparecesse o revisor? Uma ideia ridícula veio-me à cabeça. Poderia ser deportado?
Felizmente, não aconteceu nada disso. Passados cerca de três quartos de hora, dei por mim já na rua, no exterior de um dos muitos acessos à estação de London Bridge. Parei e deixei-me ficar sobre o passeio durante algum tempo, tentando situar-me. Reparei numa placa afixada numa parede e senti que a minha sorte acabara de mudar. Era um hospital. Sorri com ironia. Que oportunismo. Umas das personagens que construíra para o meu novo livro sobrevivera a um cancro.
Comecei a andar e deparei-me com a entrada de um hotel de luxo. Já ouvira falar nele, sobretudo, nos quartos, famosos pela vista panorâmica que ofereciam. Foi nesse instante que tive a primeira visão: um homem, uma mulher; os dois frente a frente, junto a uma das janelas num momento decisivo das suas vidas.
Já definira muita coisa naquela altura. Decidira o tema, grande parte do enredo, e fizera um esboço tosco, a preto-e-branco, de como o livro deveria ser. No entanto, faltava-me uma coisa, o casal de protagonistas. Acabara de os encontrar.
Perdido em sonhos, a vaguear por palavras, andei um pouco por Londres. Apesar do percalço, dispunha de algum tempo livre. Cruzei o Tamisa e deixei-me ir. Queria conhecer melhor a cidade, sentir as ruas.
Cerca de duas horas mais tarde, respirei fundo e admirei uma entrada clássica, onde, ao fundo de um pequeno lance de escadas, se via uma porta de vidro e uma inscrição em dourado. Acabara de chegar à Academia Real das Artes.
Passei o vestíbulo e subi a grande escadaria de pedra. A entrevista que tinha marcada com o diretor de coleção só começava dali a mais de meia-hora, o que me deixaria com o tempo suficiente para me organizar. Queria rever as perguntas que preparara pelo menos mais uma vez.
Assim que cheguei ao primeiro andar, fui diretamente para a sala da exposição pública. Uma obra de arte gigantesca recebeu-me ao entrar. Contornei a grande parede e, de repente, deparei-me com ele. Delimitado por uma moldura cor de vinho, ali estava o Giampietrino, três metros e dois centímetros de altura por sete metros e oitenta e cinco centímetros de comprimento, a cópia a óleo sobre tela de A Última Ceia.
Estaquei no meio da sala, indiferente aos outros visitantes. Não estava maravilhado pela imponência e singularidade do quadro. Era belo, sem dúvida, com uma expressividade desarmante. Todavia, havia algo mais ali dentro que me fez parar. Lá estavam eles, o mesmo homem e a mesma mulher de há duas horas. Sentados nos bancos de pele, de frente para a tela, contemplavam-na.
Só eu os via. Eram os meus protagonistas.
Sorri e, de repente, todo o meu esboço ganhou cor e o livro pintou-se defronte dos meus olhos.
Eu ia roubar um quadro.
Nuno Nepomuceno