O final da tarde de dia 10 foi entregue aos italianos Ghost Trio, que cumpriram o desígnio. Ficámos a conhecer melhor como se improvisa hoje por terras de Garibaldi. Mesmo no final, uma surpresa enorme a abrir o apetite para uma próxima visita.
Texto João Morales
Fotos: Hugo Alexandre Cruz
O início foi suave, em jeito de divagação, fazendo corresponder entre si as opções tomadas e as consequências para a avanço do manto sonoro tecido em conjunto, em tempo real, já que a música deste trio italiano preza pela improvisação total, não obstante a sua experimentada relação, patente na cumplicidade demonstrada a cada passo.
O clima de Música de Câmara favorecia o embalo tripartido, com cada um destes músicos italianos a devolver no seu discurso pequenos comentários ao exposto pelo anterior, dando origem a uma trama suave, um manto diáfano onde a criação ganhou contornos de celebração. No Jardim do Goethe Institut acolhia-se um Jazz livre, contudo, pacato, onde a exuberância dera lugar à precisão e a partilha fez as vezes de qualquer mestria exibicionista, com os três instrumentistas a acomodarem entre si as honras do palco.
Marco Colonna apresentou-se em clarinete e, principalmente, clarinete baixo, tendo mesmo efectuado algumas intervenções em que recorreu ao segundo com o bocal do primeiro em simultâneo, numa espécie de revisitação da imagem de Roland kirk, transportada para um contexto onde a herança transalpina comum aos três executantes não esteve completamente arredada.
Colonna, que já trabalhou com Eugenio Colombo, Ben Golberg ou Perry Robinson, e gravou em 2018 um curioso álbum a solo designado Sketches for Victor Jara, usou as palhetas de uma forma que evocava, por vezes, Michel Doneda, nos tempos de Open Paper Tree (FMP; 1995), um sopro fugidio, mas controlado, uma dinâmica que não se impõe pela forma, mas pelo carisma, em diálogo constante com os seus dois parceiros.
A contrabaixista Silvia Bolognesi, a quem coube as honras de apresentação, esteve igualmente à altura das circunstâncias, percorrendo o braço do seu instrumento com mestria, saltitando entre escalas, intercalando camadas de intensidade. Entre os projectos que integrou nos anos mais recentes, está a composição festiva dos Art Ensemble of Chicago (reunida nos 50 anos do colectivo) e uma das orquestras de Butch Morris, um dos mestres da direcção instantânea, em palco, em tempo real. Numa passagem em que acedeu ao microfone, as suas palavras debitadas sob o fundo musical ganharam dimensão transatlântica e, por instantes, o fantasma de Jayne Cortez pairou sorridente.
A trindade completa-se com o baterista, figura descontraída, de reflexos consistentes e uma aproximação à bateria que contempla a presença de diversos elementos metálicos, inseridos na cadeia de transmissão como extensão das possibilidades do instrumento, numa lógica muito querida na tradição da dita Música Improvisada. A lista de figuras da improvisação com quem este músico de 60 anos já teve oportunidade de tocar inclui sumidades como Steve Lacy ou (o infelizmente tão esquecido) Gaetano Liguori. Entre os mestres cuja herança será sensível no seu discurso musical, arrisquem-se dois nomes, Tony Oxley e Sunny Murray, patentes na destreza com que distribuía os seus “ataques” pelas diferentes peças do instrumento, ao mesmo tempo que rápidas passagens pelos pratos ajudavam à consolidação da musicalidade global final.
O mais curioso, acabou por ser, mesmo no final, a demonstração do eclectismo do trio que, embora só tendo um disco gravado, apresenta-se com uma cumplicidade evidente e divertida. Anunciado o encore, somos confrontados com um furacão de Free Jazz devedor directo dos mais viscerais exemplos desta sonoridade nos idos de 60, trazendo à memória as gravações por terras francesas recolhidas no catálogo Byg Actuel. A sonoridade elegante e bem-comportada que pautou grande parte da improvisação neste final de tarde deu lugar a um saudável vendaval, devastador, gerenerador. É caso para dizer: se na sonoridade anterior se revelaram competentes, afinal… ainda havia outra.