Jazz em Agosto 2019: Heroes Are Gang Leaders – Tem a palavra a música negra

© Jazz em Agosto / Petra Cvelbar 

A segunda noite do Jazz em Agosto 2019, no anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian, deveu tanto à música como à teatralização, criando uma bolha espácio-temporal que nos passeou por Harlem, enquanto nos recordava a máxima dos Art Ensemble of Chicago, quando se reclamam da “Great Black Music Ancient to the Future”.

Por João Morales

No centro das atenções, o poeta (e fotógrafo) Thomas Sayers Ellis, uma espécie de mistura entre o moderno MC, o antigo Pastor galvanizante e o actor que questiona continuamente a postura do negro na narrativa tradicional, papel que encontramos há muitos, muitos anos, em pequenas curtas-metragens musicadas, gravadas por estrelas hoje esquecidas. Ao seu lado, uma segunda voz masculina, Randall Horton (poeta e professor de inglês na Universidade de New Haven, no Estado de Connecticut) com quem “contracenou” na perfeição ao longo da noite.

Heroes Are Gang Leaders é um ensemble de doze elementos, quatro vozes à cabeça. The Amiri Baraka Sessions, espectáculo resultante do CD homónimo que apresentaram em Portugal, nasceu com o intuito de homenagear o legado, a postura e o trabalho desenvolvido por Amiri Baraka, poeta e ensaísta nascido LeRoi Jones (1934-2014) que trabalhou com alguns dos grandes nomes do Free Jazz, meio onde forjou a sua arte, ampliando a ligação encetada anteriormente por nomes da beat generation, ainda nos tempo do Be Bop.

Esta escolha do programador do festival, Rui Neves, trouxe-nos um grupo actual que é, simultaneamente, guardião de uma herança importante, amealhada em diversos contextos, hoje integrados numa genealogia que se foi dilatando.

Logo no início do concerto, surgem na memória diversas evocações que ajudam a enquadrar o que aí vem: Jayne Cortez, Sun Ra e as suas tropas espaciais (e a indispensável June Tyson), Cadentia Nova Denica (com quem John Tchicai gravou Afrodisiaca), The Colson Unity Troupe. A forma como as quatro vozes interagem herdou tiques e métodos do teatro radiofónico, enquanto a pose de coro gospel acentua a dimensão étnica e reivindicativa que vamos escutar ao longo de todo o espectáculo. Por vezes, parece que fomos transportados para as gravações de Hair, acrescentado de sopros conhecedores da importância da New Thing no Jazz e seus descendentes e de uma secção rítmica (Luke Stewart, baixo elétrico e contrabaixo; Brandon Moses, guitarra elétrica, e Warren Crudup III, na bateria) com os ensinamentos em dia, quanto às variações ao dispor – Funky e Blues incluídos. ”Somebody Blew up America. Was it You?”, pergunta Thomas…

“Amina” começa com um diálogo entre a viola de Melanie Dyer e o saxofone tenor de James Brandon Lewis, um cúmplice importante ao longo de toda a noite (aliás, um dos fundadores deste projecto), solando amiúde, com fervor mas sem se destacar demasiado, como, aliás, os restantes sopros (Heru Shabaka-Ra, músico da actual formação da Sun Ra Arkestra, no Trompete, e Devin Brahja Waldman, no sax alto, embora na maioria do tempo se tenha dedicado aos teclados).

Nas vozes femininas, destaque para Nettie Chickering, cantora e actriz, juntando-se à também pianista Jenna Camille, que nos brindou com dois momentos próximo da balada em quase solo, num ambiente de relax enquanto as tropas se preparavam para novas investidas, e Thea Matthews, poetisa reconhecida e activista assaz dinâmica).

A noite raramente amainou, passando por momentos com ecos de Reggae, harmonias vocais que não se estranhariam nos primeiros momentos dos Mothers of Invention e uma constante e persistente atenção ao público, fazendo-o sentir que tudo o que era dito, cantado, lido, tocado, não era apenas entretenimento, mas sim uma parte de algo maior e mais importante, uma opção que passa por juntar política, arte, humor e crítica para sublinhar uma postura que coincide com um papel social: «LeRoi LeRoi/ from New York Hill/ if capitalism wont kill you/ racism will», canta-se em palco.

A calorosa recepção rendeu um encore, começado num ambiente ligeiramente psicadélico, baixo eléctrico e voz do trompetista, a que se foram juntando os restantes comparsas. A bateria de Warren revelou-se fulcral nestes últimos momentos, uma espécie de metrónomo libertino que ajudou a levar a bom porto esta embarcação endemoninhada, convés partilhado em comunidade, sem esquecer a influência da Chicago dos anos 60 e todo o ambiente de Free Jazz que a cidade viu nascer e crescer, dando mesmo origem à histórica Association For The Advancement of Creative Musicians. De tudo isto se fez a noite, com a vez de Melanie Dyer a deixar um último recado, cantado em tom celestial: «you gotta get peace and love to get some freedom». E assim partimos.

© Jazz em Agosto / Petra Cvelbar 
© Jazz em Agosto / Petra Cvelbar 
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