© Jazz em Agosto / Petra Cvelbar |
Ao longo de mais de uma hora e meia foi a alma americana, em todo o seu esplendor e diversas facetas, que tomou conta do anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian, completamente esgotado. O concerto de estreia do Jazz em Agosto 2019, “Songs of Resistance”, conceito conduzido pelo carismático Marc Ribot, teve direito a três merecidos encores, perante uma audiência rendida à emoção, entrega e virtuosismo que este colectivo nos trouxe.
Por João Morales
A voz de Ribot e a sua guitarra, recorrendo a um conjunto de riffs que poderiam remeter para uma herança actualizada do fraseado de Richie Havens, marcaram o início da noite, entoando “We Are Soldiers in the Army”, igualmente o tema inicial do CD deste recente projecto (na versão gravada em estúdio o tema era interpretado pela cantora Fay Victor). Como facilmente se percebe, estamos perante um conjunto de cações de protesto, de denúncia, de revolta, de alerta. Algumas transportadas no tempo (realçando a actualidade da sua essência) outras nascidas na conjuntura actual dos EUA, marcada pela eleição de Donald Trump e respetivas consequências na política – interna e externa.
Os restantes músicos vão-se agrupando, a tensão aumenta e assistimos ao primeiro solo de Jay Rodriguez, colombiano a seguir com muita atenção (aos interessados uma sugestão: procurem o seu CD Live in Italy, com o histórico pianista Chucho Valdés). O seu som mantém a frescura e o balanço da América Latina, mas integra já a influência cosmopolita onde hoje se integra, criando as condições necessárias para solos soltos e dinâmicos, sempre com uma ligação evidente à harmonia colectiva dos parceiros.
O tema seguinte, “The Big Fool”, uma composição de Marc Ribot, prossegue e confirma o ambiente. A percussão marca bem o seu território, bongos e outras peças a cargo de Reinaldo de Jesus (porto-riquenho que estudou no Berklee College of Music), bateria nas mãos sábias de um Ches Smith em permanente ascensão técnica (Smith tem sido o baterista escolhido por Marc Ribot em vários formatos, além de integrar projectos inigualáveis, como Mr. Bungle ou Secret Chifes 3). A sensação de ritual colectivo percorre o quinteto, completado com o contrabaixista Brad Jones, músico que passou pelos Jazz Passengers mas também partilhou palcos com Muhal Richard Abrams, Elvin Jones, Ornette Coleman ou Han Bennink.
E é justamente Brad Jones que inicia o tema seguinte, “How to Walk in Freedom”, mais um hino de apelo à liberdade e consagração dos seus combatentes, referindo figuras como Emma Goldman, Mahtma Ghandi, Malcolm X ou ate mesmo Rosa Parks, a histórica negra que se recusou a ceder o lugar no autocarro a um branco, em 1955.
Marc Ribot vai entoando, como se de uma oração se tratasse. É visível que este guitarrista, que começou por dar nas vistas ao acompanhar com o seu instrumento vozes como Tom Waits ou Elvis Costello, gosta cada vez mais de cantar, tendo essa faceta adquirido um papel crescente nos seus álbuns, desde o já longínquo e seminal Rootless Cosmopolitans (embora nesse seu primeiro álbum já fizesse o gosto à voz).
Ribot vais oscilando entre a guitarra eléctrica e acústica, transportando pólen de John Fahey, Dereck Bailey, Nels Cline ou Chris Cochrane. No final, resulta uma sonoridade exemplar, a condizer com a imagem de entrega que a sua figura curvada sobre a guitarra sublinha indelevelmente. Com alguns pozinhos de funk, blues ou hip hop, Ribot e o seu bando prosseguem a jornada. Em “John Brown” assistimos a um momento mágico, com uma intensa luz vermelha a cobrir o grupo em perfeita sintonia com a capacidade incendiária que várias vezes demonstram.
O primeiro encore dá-se com “We’ll Never Turn Back (“dedicado aos amigos LGBT que lutam no Brasil” pelo guitarrista), com uma discreta flauta nas mãos de Rodriguez. O segundo é composto por mais dois temas, com a palavra “resistance” bem audível e alguma influência dos Ceramic Dog – um outro projecto de Ribot igualmente marcado pela intervenção política.
Uma noite inesquecível termina com o guitarrista a solo, interpretando mais um tema do CD, “Srinivas”, dedicado a Srinivas Kuchibhotla, um emigrante sikh assassinado no Kansas, em 2017, por ter sido confundido com um muçulmano.
Esta é uma noite que vai ficar na memória de todos os que assistiram e conquistou já um lugar entre os grandes concertos do Jazz em Agosto ao longo de três décadas e meia de prolífera actividade. E a alma americana terá ficado orgulhosa da forma como foi representada, num tempo em que Ribot assume o seu país como “a litlle fucked up”.
© Jazz em Agosto / Petra Cvelbar |
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