Por João Morales
Porquê juntar estes dois livros no mesmo texto?
O eixo que os une talvez seja o 25 de Abril, pensa-se à primeira. Não o dia, o acontecimento, a Revolução, o êxtase, mas como ponto de referência num recta real, das que se aprendiam em Matemática, balizando a montante e jusante o contexto de um antes e um imediatamente depois que se revelam à lupa da distância temporal.
Ou, talvez não. Talvez partilhem a demonstração da humanidade que corporiza a História, a Micro-História, mesmo, apaixonante forma de relatar o Devir através de casos concretos, de vidas enormes, nomeando na multidão para que de anónimos não se façam os relatos.
Ou, talvez, ainda uma terceira hipótese. Tudo isto representado na vida de um homem, na vida de uma mulher, criando um efeito de espelho, uma tabela comparativa emotiva não mesurável. No fundo, duas vidas. E nelas, tantas outras.
«Fugir é levar o medo às costas. Não está dentro de nós, levamo-lo como uma mochila; esta tem uma fivela que nos vai picando e acaba fazendo uma ferida», lemos, logo na primeira página do mais recente romance de António Tavares, Homens de Pó, obra publicada na Dom Quixote.
O cenário temporal é o período que se segue à Revolução de Abril, tempos de inigualável confusão e convulsões num país demasiado habituado à modorra da incontestação, formatado segundo direções que emanavam do topo para a generalidade, sem discordância ou quaisquer vislumbres de questionamento. Num volte-face tremendo, Portugal vê-se a braços com a sede imensa de tudo debater, «numa ânsia colectiva de tudo fecundar», como escreveu José Mário Branco.
O grupo de homens, portugueses e africanos, agora formalmente naturais de continentes distintos, que constitui o cerne deste romance trabalha na construção e estradas, na terraplanagem das futuras vias, aperfeiçoamento das existentes, arranjo das destruídas. Uma metáfora inteligente, gizada por alguém que muito tem pensado sobre a questão colonial e a as suas consequências na construção da cidadania portuguesa e da nossa concepção de Estado, de Governo, de Poder… e outros conceitos operativos em exercício, mesmo quando não enumerados.
«A azáfama das máquinas e o ruído que produziam transtornavam-nos. Tínhamos descido ao inferno e alguns não aguentavam. Ao fim do dia, as minhas botas estavam mais pesadas devido ao pó e à lama que se entranhavam nelas. Lavávamos constantemente o nariz. Libertava fluidos raiados de negro, filtrados do ar que respirava. Não havia máscaras, luvas ou capacetes. A cada instante seguia um tipo para o hospital mais próximo, por doença ou acidente. No final, haveríamos de ter mais pó nos pulmões do que terra nas botas. Éramos carregadores de pó.»
A narrativa vai dando conta das movimentações desses dias sem par, das conjugações políticas que nasciam para logo se digladiarem, das figuras que surgiam ao centro das discórdias e entendimentos, muitas delas hoje esquecidas e remetidas para uma mais que discreta nota de pé de página.
O peso da cidadania, aliado a um orgulho renascido e vontade de ampliar o mundo circundante de cada um, reflectiam-se em diversas questões do quotidiano. O autor evoca essa temática através das aulas nocturnas, denúncia de um extremo analfabetismo, mas igualmente da consciência unânime sobre a necessidade de combatê-lo. É nestes encontros, autêntico símbolo de um país a renascer, que surge a questão amorosa, introduzindo uma nota mais de humanismo nesta narrativa.
E, por falar em mulheres, passemos ao segundo livro…
«Laura tinha vinte e um anos e uma acentuada inclinação para a revolta. Era contra este Portugal insubmisso e miserável, onde as pessoas levavam a vida de costas vergadas, que se insurgia. Viera há dois anos de Mértola para Lisboa, estudava na Faculdade de Direito e envolvera-se em todo o género de conspirações», descreve Ana Cristina Silva, uma Laura Branco mimetizada de uma mulher real (só o nome lhe foi trocado), assim baptizada para As Longas Noites de Caxias (Planeta), um romance duro, que não esconde a sua génese numa realidade ainda mais cruel.
Uma mulher como esta tinha poucas hipóteses de escapar: «Laura foi capturada pela PIDE a 3 de Maio». E é por via dessa detenção que acabamos por conhecer a motivação deste romance, uma outra mulher, igualmente real na História-por-vezes-obscurecida de Portugal, figura distinta e identificativa na estrutura do medo que suportava a Ditadura.
«No dia em que Salazar foi a Setúbal e beijou Maria Helena na testa, o seu pai deu uma tareia à mulher. Catarina ficou em casa a soluçar e só ele assistiu àquele momento que marcou a filha. A sua fúria já estava extinta quando saíram, mas não podia levar a mulher consigo porque ela tinha o olho esquerdo fechado pelo inchaço», lemos, entre o espanto e a repulsa.
Um parágrafo axial desta narrativa, já que nos transporta para a infância da torcionária em questão, e centraliza, potencia, extrapola – de certa forma – toda sua formação e aquisição e valores num episódio condimentado com alguns dos elementos mais identificativos da época – o culto do Poder público assumido em vassalagem e deslumbramento associado a uma violência endémica gerada na ignorância, alimentada na maior boçalidade.
O carácter de Maria Helena, a Leninha que nos vai assombrar ao longo da história, fica igualmente apresentado, quando Ana Cristina Silva – cuja formação na psicologia a levou a conhecer a mulher a quem Laura dá o nome, num romance que evoca pessoas reais para regressar à escuridão da PIDE – escreve: «acabara de escolher o lado do pai, tomara o partido do mais forte e decidira que a mãe era a culpada».
A narrativa assenta, em grande parte no confronto entre estas duas mulheres, representações simbólicas de opções perante uma mesma conjuntura, pretextos para questionar a sociedade da época e muitos dos seus espartilhos.
As contradições entre prática e teoria, numa sociedade fracamente politizada, mas onde se começa a debater, a questionar, a ponderar, também estão presentes. O romance com José António (cujo apelido Ribeiro dos Santos o imortalizou, depois das balas da PIDE lhe terem tirado a vida, em 1972), este sim, engendrado pela romancista, serve na perfeição para expor esse aspecto: «Ela estava habituada a reconhecer a pobreza no meio do quotidiano, sabendo por isso muito mais sobre a revolução do que ele».
Este livro é também um elogio à coragem e à hombridade. Ficará na memória de todos, a cena em que Laura enfrenta dois agentes, num interrogatório, começando a entoar uma canção de José Mário Branco: «Um, dois e três, era uma vez um soldadinho. Um menino lindo que nasceu no roseiral. Os meninos lindos não nascem para fazer mal».
Além da sua força natural, da qualidade e ritmo da escrita, da reflexão que significam sobre um período da nossa História (ainda) recente, ambos os livros têm uma característica fundamental que justifica uni-los numa mesma prosa e aconselhar mesmo a sua leitura de forma consecutiva.
Homens de Pó, como se disse, centrado num olhar masculino e num universo onde o trabalho braçal delimita os contornos do quotidiano, e As Longas Noites de Caxias, narrativa que trespassa a vida de duas mulheres colocando-as em pontas opostas de uma mesma lança cravada no tempo e da qual nenhuma delas conseguirá jamais escapar, são dois excelentes livros para serem lidos em sala de aula (a partir do 9º ano, talvez), debatidos, e tomados como ponto de partida para evocar alguns aspectos menos debatidos em torno da Ditadura e das suas consequências. O Ensino do Estado Novo e as suas consequências; a estrutura familiar e o papel social de cada elemento; a perseverança e a subserviência ou o maremoto socio-económico que atravessou um Portugal em convulsão e as suas manifestações são apenas alguns dos tópicos possíveis…
Homens de Pó
António Tavares
Dom Quixote
224 págs
16,60 euros
As Longas Noites de Caxias
Ana Cristina Silva
Planeta
200 págs
16,95 euros