Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica
Natália Correia (selecção, prefácio e notas)
Ponto de Fuga
528 págs
24,40 euros
O Natal de 1965 trazia consigo um presente destinado a leitores de mente aberta, livro de tal maneira controverso que levou a sua organizadora, a escritora Natália Correia, a responder em Tribunal pela afronta aos bons costumes. Em 2019 vimos chegar às livrarias uma nova edição de um dos livros mais citados na bibliografia pícara portuguesa, a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, um trabalho monumental que reúne textos desde o séc. XIII para nos demonstrar como o sexo, o humor, a sátira e a verve afiada, devidamente espaldada num conhecimento profundo das possibilidades linguísticas lusitanas, são elementos ancestrais na nossa formação e na nossa cultura.
«Menina, este vosso favor,/ favor é que não agradeço/ porque algum dano encobre/ pores-me o mel pelos beiços: Se para a Cera do Favo/ quereis pavio, eu prometo/ dare-vos um tão bom pavio/ que vos dure sempre aceso», escrevia Frei António das Chagas (1631-1682), iniciando o seu poema “Romance”.
Já António Lobo de carvalho (1730-1787) lamentava-se em soneto: «Este que vês aqui, formosa dama,/ entre moles testículos pendentes,/ já foi em outro tempo raio ardente,/ hoje é pavio que não solta chama».
Esta edição, que por debaixo da sobrecapa nos remete para a original, da pioneira editora Afrodite, de Fernando Ribeiro de Mello, comporta uma parte inicial composta por vasta documentação, incluindo cartas trocadas com autores e material oficial do processo que abanou a intelectualidade, envolvendo Ernesto M. de Melo e Castro, Luiz Pacheco e David Mourão-Ferreira. A lista de autores é extensa, envolvendo criadores canónicos como Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Eugénio de Castro, Guerra Junqueiro ou Fernando Pessoa, ou textos atribuídos a autores anónimos, lado a lado com os provocadores Manuel Maria Barbosa du Bocage, Mário Cesariny de Vasconcelos ou um desempoeirado Carlos Queirós (1907-1949), com o hilariante “A partida do Leitão”:
O Leitão da Renascença,
o profeta da batata,
vai ao Brasil na fragata…
porra! Com sua licença.
O Leitão vai ao Brasil
para demonstrar aos di lá
como se pode ser cá
tão ilustre e imbecil
Leva na mala o chapéu
de plumas (ai, o sacana!)
e um bider de porcelana
que o Júlio Dantas lhe deu.
Leva um penico de prata
com a marca do Leitão
ourives – que é seu irmão
de leite – com muita nata.
E leva um irrigador
com o pipo cor-de-rosa
presente do Pais de Sousa
pois tem o cu dessa cor.
Leva mais: leva na peida
A Ceia dos Cardeais,
obra que jura ser mais
importante que a Eneida.
E leva também do Júlio
Dantas em sua bagagem
esta discreta mensagem
para entregar ao Gertúlio:
“Em missão sentimental
aí vai esse bandalho
que é portador de um caralho
de fabrico especial
capaz de fazer ganir
de gozo bruto ou dor bruta
o grande filho da puta
que di lá o mandou ir”.
João Morales