Um trio clássico de Jazz e um quarteto de percussões oriundo da Contemporânea entram em palco e mostram ao que vêm. Daniel Bernardes e Drumming GP revelaram-se uma história bem contada, no antepenúltimo concerto do Jazz 2020, da Fundação Calouste Gulbenkian.
João Morales
Um auditório muitíssimo bem composto, apesar de restringido à diminuição de lugares que a pandemia implica, foi o cenário que acolheu na Sexta-feira, dia 7, este curioso projecto conduzido pelo pianista Daniel Bernardes, e ao qual deu a designação de Liturgia dos Pássaros, como referência ao compositor Olivier Messiaen. Estava inaugurado o segundo fim-de-semana do Jazz 2020, a iniciativa que assegura a presença desta música no anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian.
Os primeiros sons que se escutaram foram produzidos por arcos em contacto com os dois vibrafones (manejados por Pedro Góis e Jeffrey Davis), produzindo harpejos cristalinos e quase celestiais. O cenário sonoro foi completado pela passagem bem enquadrada de um avião, dos muitos que os habituais frequentadores do anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian, estão mais que habituados bestas noites de Jazz. A marimba de Miguel Bernat e o xilofone de João Dias completavam o quarteto percussivo que dá pelo nome de Drumming GP.
A eles, juntava-se um trio clássico de Jazz, com Daniel Bernardes no piano (e composição), António Quintino (contrabaixo) e Mário Costa (bateria). No total, um septeto quase improvável que, não renegando toda uma herança mais que evidente da Música Contemporânea, conseguiu por diversas vezes introduzir a dinâmica da improvisação e a surpresa de tocar em conjunto, ao vivo, de forma irrepetível.
A parede rítmica inicial ergueu-se à sombra de um minimalismo encorpado e devedor da articulação colectiva, com algumas passagens mais suaves do piano a fazerem lembrar alguns momentos delicados de Bill Evans. A bateria de Mário Costa funciona como uma espécie de relógio, de metrónomo, de fiel que permite ao conjunto balançar sem pender demasiado.
O líder do projecto vai deslizando os dedos pelas teclas numa demonstração de subtileza, sugerindo um clima que seria adequado à banda sonora de um melodrama, melancólico e sentido. As nuances que garantem a dinâmica da música jogam-se na diversidade de timbres.
Jeffrey Davis vai dando um ar da sua graça em alguns curtos solos, Bernat, apesar de ser o mentor do agrupamento de percussão, mantém uma serena discrição nas suas intervenções. Ligeiros apontamentos conseguidos com outros elementos de percussão ajudam a compor o ambiente.
O pianista vai apresentando os temas. “19”, que abriu o set; “Bolero” (com um conjunto de falsos finais que ia baralhando os aplausos mais afoitos); “Ao Olivier” (reconhecendo, mais uma vez, o Mestre inspirador); “Globular Clusters” ou “Sobre Kieślowski”, em homenagem ao realizador da trilogia com as cores da bandeira francesa, como o compositor fez questão de referir.
Este concerto foi mais uma demonstração das relações quase incestuosas que o Jazz e a Música Contemporânea podem desenvolver, preconizando um papel fundamental para a composição, embora sem qualquer desprimor para a mestria e capacidade de interpretação de cada um dos envolvidos. É também um reflexo da forma como uma nova geração (Daniel Bernardes nasceu em 1986) conduzirá um legado devedor das pautas e da intuição. Afinal, Daniel foi o primeiro licenciado em Piano Jazz, na Escola Superior de Música de Lisboa, em 2011, oito anos depois de ter participado nos Seminários de Composição da Fundação Calouste Gulbenkian, orientados por Emmanuel Nunes.
A noite encerrou com a multidão mascarada escutando “Ostinato Interlúdio e Canção nº 5”, com um início em que a marimba sobressai, o piano parece ganhar asas e há espaço para alguns solos esclarecedores, como os de, novamente, Jeffrey Davis ou o baterista Mário Costa.
No fundo, os sete músicos funcionaram de forma coerente, como os dedos ginasticados de uma mesma mão. Uma noite bem passada e com algumas pistas sobre a forma como se podem conjugar duas linguagens sonoras que transportam consigo a vanguarda e a evolução constante, herança de um séc. XX profícuo em vanguardas e avanços estéticos, que agora urge conservar e manter em forma, recorrendo sempre à idiossincrasia de cada projecto. Ainda mais num caso como este, que aposta numa formação muito pouco habitual, apesar do resultado final se pautar por uma salutar e quase imediata osmose com a audiência.