Recensão: Em Todos os Sentidos, de Lídia Jorge, por João Morales

Em Todos os Sentidos

Em Todos os Sentidos
Lídia Jorge

Dom Quixote; 261 págs; 14,90 €

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A páginas tantas, lemos: «Mas o que sei é que se tem de encontrar uma palavra diferente para compaixão e solidariedade, palavras que supõem de um lado um sujeito salvo e, do outro, um sujeito para salvar. E não é mais assim. A cada dia que passa, o que acontece lá é como se acontecesse aqui, o que acontece aos outros é o mesmo que pode acontecer na nossa rua. A Terra é um só espaço, e todos os países estão unidos pelo mesmo traço de convivência necessária».

Em certa medida, palavras que remetem para o sentimento dominante nestas crónicas de Lídia Jorge, reunidas sob a designação Em Todos os Sentidos (edição da Dom Quixote), título suficientemente malicioso para remeter o leitor a uma múltipla interpretação que alguns dos relatos poderão conter, não se fechando na narrativa por si só, mas igualmente para as portas de entrada no universo que é cada ser humano, os canais de ligação ao mundo real, os nossos cinco polos de recepção sensorial, afinal, a ponte primeira com a realidade que nos circunda.

O título do livro nasce do espaço radiofónico homónimo que o antecedeu, juntando assim quarenta e uma crónicas lidas pela escritora Lídia ao longo de 2019, aos microfones da Antena 2.

Lídia Jorge não se coíbe de traçar algumas críticas, como a denúncia de um egocentrismo contemporâneo, exacerbado por uma utilização doentia e exaustiva das redes sociais; centrando na primeira pessoa o interesse, o valor e a bitola de comparação do próprio. O texto intitula-se “O Tubarão”: «As pessoas viram-se de costas para os quadros, põem-se a jeito, e tiram uma selfie que enviam para os amigos e para a nuvem. Não dizem, eu vi a Mona Lisa, dizem, eu até passei diante da Mona Lisa, e esta é a prova de que estive no Louvre».

Seja como for, tanto nos elogios como nas anotações menos abonatórias, este é um livro que assume a sua dimensão humanista, no sentido em que nos evoca o preceito clássico, tomando o Homem como a medida de todas abordagens, de todas as coisas. E este raciocínio, ao longo dos tempos, derivou em diversas metáforas subsequentes. Se Terêncio afirmava como “nada do que é humano me é estranho”, Jorge Luis Borges discorria como cada homem é todos os homens. Lídia metaforiza com a natureza, escrevendo como faz corresponder «todas as águas, uma só água, milhares de fontes de vida, só uma fonte de vida».

O contundente texto “Black Friday” marca fundo as contrariedades da nossa contemporaneidade, rendidos às opções tecnológicas, ao facilitismo de uma modernidade selectiva que oculta os sacrificados para a manutenção desse patamar de suposta qualidade de vida para uns, em troca da vida e da dignidade de outros. Partindo do dia em que o Ocidente celebra as compras compulsivas nas grandes cadeias comerciais, acaba por nos confrontar com o obscuro montante desses holofotes, «como no interior do Congo onde milhares de crianças aprisionadas, neste momento, estão a escavar rocha com as mãos nuas nas minas de cobalto para que tenhamos o Samsung barato».

A linguagem utilizada é rica e apoia-se na crueza das opiniões traçadas, mas igualmente recorre a uma sapiente galeria de imagens poéticas, cuja clareza também não é deixada ao acaso. São construções buriladas com perícia, criando imagens fortes numa formulação construída a partir de elementos simples e reconhecíveis.

Discorrendo sobre a brutalidade da Natureza, anterior ao nascimento, posterior à morte, de cada protagonista humano desta longa epopeia que é a Vida, no seu sentido mais amplo, reflete: «Mas a Liberdade é uma jovem grávida que caminha às costas de uma velha cínica, e custa a dar à luz. Refiro-me às dores da libertação, que nunca são amenas». A citação é retirada da crónica “A Cidade Traída”, a que pertence igualmente a primeira transcrição deste texto.

A escrita da autora serve-se de uma clareza que lhe permite uma leitura fácil, embora não se deva considerar por isso que o entendimento dos objectivos, das motivações, dos significados implícitos esteja facilitado. Escriba experiente e atenta a diferentes enfoques sobre uma mesma realidade, universal, transversal e resultante de diferentes vasos comunicantes, aproveita a sua crónica “Geografia partilhada” para desmistificar olhares ingénuos, acerca das virtualidades que a escrita, e a leitura, possibilitam e recompensam:

«Digam agora que a ficção não serve para nada. Proclamem melancolicamente que o romance é um objecto de museu, que a sua função terminou, que desse género já não sai coisa que valha a pena. Eu não concordo. Acho precisamente o contrário. Não só o romance espelha realidades que andam escondidas e que de outro modo permanecem invisíveis, como ainda por cima fornece ideias úteis que depois vêm a ser postas em prática. Outras vezes, o que acontece na realidade não teria interpretação possível se antes a ficção não o tivesse imaginado, ou, posteriormente, não viesse a esclarecer», sintetiza a autora, na crónica “Geografia partilhada”.

Em suma, neste conjunto de textos, quando acompanhamos as reflexões da autora, estamos também perante um evidente exemplo de como a arte de contar histórias desenvolvida ao longo de anos e com muitas provas dadas, acaba agora por fornecer o chão onde se plantam estas crónicas, também elas pequenos episódios narrativos, artilhados com camadas de entendimento à medida de cada um e um ritmo contagiante que nos convida a ler até ao fim. 

João Morales

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Isabel Zambujal
3 anos atrás

Li até ao fim, João. E já encomendei o livro:)

  • Sobre

    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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