Jazz em Agosto 2023: De corpo e alma [Zoh Amba Trio]
Seguindo a linha claramente traçada para este ano, o trio que actuou na noite de dia 2 de Agosto foi militantemente dirigido por uma mulher, a jovem Zoh Amba, que nos deixou sem respiração, sem nunca perder o fôlego.
Texto: João Morales
Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo
Não há qualquer período para prólogo ou introdução. Assim que os três músicos começam a sua função, o ritmo dominante está estabelecido e o clima sonoro em que estamos mergulhados não deixa grande margem para dúvidas: vai ser uma noite de Free jazz, o que Zoh Amba Trio propõe no anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian. E cumprirá.
Há na música de Zoh uma urgência e uma entrega que são características de toda uma herança sonora citada e revisitada amiúde ao longo das suas intervenções, uma genealogia que passa por nomes como Albert Ayler, Frank Wright, Frank Lowe ou David S. Ware – como bastas vezes tem sido referido, denunciando logo uma corrente de saxofonistas onde a espiritualidade tem um papel fulcral na criação e entendimento do que é a música – mas que não se esgota nestes mestres. Ao longo de uma hora de concerto (talvez um pouco menos, diga-se em abono da verdade), passagens existiram que podiam perfeitamente prestar homenagem ao recentemente desaparecido Peter Brotzmann, mas em outros momentos a sonoridade poderia remeter para um outro nome maior do jazz mais liberto da década de 60, hoje algo esquecido, o grande Arthur Jones (que, radicado em França, assinou uma das obras-primas do jazz, o disco Scorpio, gravado em 1969 e publicado dois anos depois).
«Aos 23 anos, a saxofonista tenor Zoh Amba é nada menos que um fenómeno. Deixando o seu Tennessee natal para se estabelecer em Nova Iorque e movida por uma energia extraordinária, ela faz virar muitas cabeças, começando por improvisadores que têm duas, três ou até quatro vezes a sua idade», lia-se nas notas de apresentação do icónico Festival International de Musique Actuelle de Victoriaville, em Maio deste ano. Amba conta até agora com dois discos publicados, ambos em 2022, O, Sun e Bhakti, (o primeiro, com a produção de John Zorn, publicado na sua editora, Tzadik, e contando na bateria com Joey Baron, elemento central do “Dowton New York” e do ciclo de Zorn). Impossível que não fosse uma das grandes expectativas na edição do Jazz em Agosto 2023. Contudo, o anfiteatro não estava a abarrotar, embora composto…
O portento que nos visitou foi servido em formato de trio, ligação propícia para que cada um dos elementos pudesse ser devidamente apreciado. Atenção, não estamos a falar de longos solos individuais, mas de um ritmo trepidante – na maioria do tempo – que exigia a um o controlo mais que razoável da evolução da realidade e uma sensibilidade apurada para o que ia surgindo em palco, em grande medida impulsionado pela intervenção visceral que a pequena saxofonista, ao centro, vociferava em plena dedicação. A improvisação perfilhada que escutámos deve mais a um entendimento intuitivo e sensorial do que tocar e de como fazê-lo, do que a uma concepção cerebral e teórica.; estamos perante uma improvisação extremamente “física”.
A ligação entre os três músicos foi excelente. Luke Stewart, homem que tem no seu currículo nomes como Archie Shepp, Ken Vandermark, Daniel Carter, Hamiet Bluiett ou Wadada Leo Smith – e que ainda em 2022 nos visitou, então integrado nos Irreversible Entanglements – teve desta vez todo o espaço por onde demonstrar a sua virtualidade, correndo o braço do contrabaixo, fixando dinâmicas, assegurando contraponto aos seus dois pares, raramente abrandando o ritmo, ao sabor da ofensiva que pouca trégua permitia. Algumas vezes, quando a utilização do arco pretendia suavizar o colectivo, foi acompanhado por uma das contingências obrigatórias destas noites do Jazz em Agosto: adivinharam, os aviões.
A outra metade da secção rítmica foi assegurada por Chris Corsano, artista bem conhecido do público português (até pelo seu trabalho regular com Rodrigo Amado), com mais de uma centena de discos gravados, envolvendo Evan Parker, John Edwards ou Paul Flaherty, mas também os Six Organs of Admittance (nomes seminais da corrente New Weird America), o ecléctico Jim O’Rourke ou Thurston Moore (o guitarrista dos Sonic Youth).
Corsano esteve imparável, num constante cruzamento de ritmos, uma utilização sagaz dos pratos e uma perecpção rítmica assaz responsável, consolidando o edifício sonoro que se foi erguendo perante uma plateia rendida à entrega e ao desempenho dos três, entendendo rápida e eficazmente os momentos de ascese em que Amba passa do sopro sibilante ao vociferar em entrega total, demonstração da sua própria entrega e concepção pessoal acerca da função da música na nossa vida. Não deixa de ser curioso, a mais jovem presença deste festival trazer-nos a herança do período áureo da improvisação no jazz.
A dada altura, ao meu lado, alguém perguntava: “onde é que ela vai buscar aquela força toda?”. O artigo publicado em Setembro de 2022, no The New York Times, foi um dos sinais de alerta sobre uma nova voz no jazz. E a própria Zoh afirmava nesse artigo: “A música é Deus, Deus é a música. De mãos dadas”, dando continuidade à união tão celebrada na década de 60 por músicos cuja grande aspiração era contribuir para um mundo mais harmónico, a partir de uma música que parecia denunciar harmonias apenas aparentes.