Jazz em Agosto 2023: Uma calma apenas aparente [ Mary Halvorson’s Amaryllis ]
Um sexteto dedicado a receber-nos com bonomia. Todavia, a aparente facilidade que serve de primeira impressão, acaba por deixar à vista (e ao ouvido, principalmente) uma construção inteligente e bem estruturada. Com um pé na composição, outro na voz de cada músico.
Texto: João Morales
Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo
A música produzida pelo Mary Halvorson’ Amaryllis assenta numa leveza e numa capacidade de empatia, que não deve afastar o seu entendimento acerca da complexidade que envolve. Logo no arranque do concerto, um primeiro tema transmite um ambiente sonoro calmo, pastoril, acentuando uma dimensão cinematográfica que acompanha as opções do sexteto.
O anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian estava à cunha, para escutar a banda sonora ideal para uma noite de Verão assumido. Mary Halvorson chegou aos palcos portugueses em 2013, pela mão de Anthony Braxton (neste mesmo festival) e é hoje uma das mais populares propostas do jazz contemporâneo, com um leque de colaborações que engloba nomes como Ches Smith, Jessica Pavone, Peter Evans, MIchael Formaneck ou Ingrid Laubrock. O álbum que deu nome a este sexteto (e do qual a banda tocou apenas um tema, oferecendo-nos imenso novo material, como a compositora explicou quando se dirigiu à audiência) foi lançado em 2022 e unanimemente considerado como um dos discos mais importantes do ano.
A articulação entre os seis elementos do sexteto acentua a orquestração, uma textura elaborada mas de fácil adesão, que cobre uma sonoridade de um certo jazz de câmara, com as conexões entre cada elemento afinadas e precisas, expondo um caminho que faz cruzar composição e improvisação, trilhado sem esforço aparente e com subtil mestria de todos.
Os temas foram sucedendo, oito mais um curto encore. O segundo começa com o vibrafone de Patricia Brennan (com um percurso musical entre a improvisação e Música Clássica) e o trompete de Adam O’Farrill (filho e neto de músicos), partilhando uma sedução onírica, Mary discorre sobre o tema, o conjunto toma forma, a precisão das passagens é uma constante.
Já no início do tema seguinte, a guitarra de Halvorson tira partido de um pedal de delay, sublinhado aquilo a sua intenção já antiga de não ficar presa a um género musical, antes integrando nas suas composições elementos que nos trazem diferentes cambiantes, sem que em compartimentos específicos s e esgotem. Na sua mão, os movimentos repetitivos acentuam a novidade enclausurada. Há, na música produzida por este sexteto, um rejuvenescimento do easy listening, um sentimento já depurado que nos chega da década de 50 do séc XX ou uma longínqua nostalgia de algumas orquestras de salão, tudo destilado num caudal de modernidade e contemporaneidade que fica bem expresso na forma como as bases rítmicas sustentam os solos ou na recusa de qualquer evidência mais histriónica. Contudo, não se confunda a adesão melódica que a música pede com qualquer simplicidade ou cedência – tudo é filtrado e preenchido, com rigor e pormenor.
Apesar da coerência entre todos, será justo destacar o solo efectuado pelo já referido O’Farrill ou a constante vivacidade do contrabaixista Nick Dunston (músico que já tocou com Marc Ribot, Ches Smith, Craig Taborn ou Vijay Iyer), incluindo alguns momentos em que demonstrou uma sábia manipulação do arco. O agrupamento é completado com o trombone de Jacob Garchik (homem que tem no seu currículo sumidades como Lee Konitz, Henry Threadgill ou o fabuloso Kronos Quartet e, em 2022 publicou o magnífico álbum Assembly, pela Yestereve Records) e a bateria de Tomas Fujiwara (que integra um outro colectivo com Mary Halvorson, Triple Double), responsável igualmente por uma prestação assinalável.
Em suma uma noite de música extremamente agradável, sem momentos de mestria individual à cabeça, antes privilegiando um ambiente conjunto, um avanço em bloco ao longo da noite, que permitiu aos músicos irem abandonando alguma contenção para, gradualmente, exporem um pouco mais a sua faceta de improvisadores.