‘O Crime do Padre Amaro’, edição em castelhano da obra de Eça de Queiroz, estava esta semana à venda por… 20 cêntimos. Por 1 euro, comprei cinco livros quase novos numa loja de artigos em segundas, terceiras e outras mãos, em plena Lisboa. Por ali, os livros têm pouca procura e valem o que valem, ou seja, quase nada.
Jovens de menos posses ignoram livros e olham gulosos para guitarras, cd e aparelhómetros vários que se oferecem por valor muito razoável. Imagina-se as mãos e as histórias por que passaram todos estes objectos. Num dos meus livros de 20 cêntimos, tentei vislumbrar o semblante da mulher que, há uns míseros 5 anos, escreveu em página interior: “Para a minha querida neta V.”
Mesmo ao lado da loja, num minimercado de produtos biológicos, outros jovens, com outras posses e outras convicções, dão por bem gastos os 20 cêntimos que pagam por cada batata – porque as coisas valem o que cada um quer pagar por elas.
Um ex-ministro ligado à cultura enche a cesta com frutas e legumes bacteriologicamente correctos e caros. Mais prosaico, um homem-forte e rico do ex-BPN não se envergonha de tentar (de novo) a sorte no Euromilhões num quiosque ali perto.
Porque as coisas valem o que valem…
Portugal e os portugueses vão ter que mostrar o que valem por muito tempo, para saírem do aperto em que os/se meteram. O meu amigo Zé dos Pneus não se cansa de repetir que, “hoje, as coisas só se medem em euros”. É público que o ganho médio mensal dos políticos aumentou 81 euros em relação a 2011 – os mesmo políticos que decidiram acabar com obras e investimentos públicos, porque não há euros, só dívidas para pagar lá fora.
Há uns 150 anos, o chefe de governo Fontes Pereira de Melo, contemporâneo de Eça, viciou-se em estradas e caminhos-de-ferro. Reduziu à força os juros da dívida pública e aumentou os impostos. Foi um escândalo, até porque credores estrangeiros logo fizeram suspender a cotação dos fundos portugueses em Londres. Aponta–se um político “impulsivo e cheio de ilusões”, que apostava forte e dava valor às coisas. Fez obra mas… esqueceu-se das pessoas.
À conversa com o Zé sobre o valor de coisas e pessoas, de livros velhos e legumes biológicos, indignei-me com o fraco valor que se dá à cultura e às suas obras. Indignou-se ele comigo, mais preocupado com os 200 euros que vai gastar com os livros escolares da filha. E fez-me contas de optimista: graças à crise, já se pode comprar a obra completa do Eça por 5 euros, mais coisa menos coisa.
Publicação original em: http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/outros/domingo/o-valor-das-coisas