Jazz em Agosto 2025: A Metamorfose (Darius Jones – Legendo of e’Boi)

Jazz em Agosto 2025: A Metamorfose (Darius Jones – Legendo of e’Boi)

Um daqueles concertos que começam com um tom e acabam noutro. Pelo meio, um convite ao convívio, memórias com quase quatro décadas, a música dos escravos e homenagem ao tio que é responsável por Darius Jones ser saxofonista.

Texto: João Morales

Fotos: Petra Cvelbar – Gulbenkian Música

Falemos então sobre o concerto de Darius Jones, a partir do álbum Legend of e’Boi (The Hypervigilant Eye), lançado em 2024 (este é apresentado como o sétimo capítulo de uma empreitada de nove, iniciada em 2009, sob a designação Man’ish Boy).

Na verdade, quase que poderíamos falar de dois concertos. Segue a explicação. Domingo à noite, dia 3, o saxofonista apresentou-se no Anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) em formato de trio, acompanhado pelo contrabaixo de Chris Lightcap e bateria de Gerald Cleaver. Trazia ainda consigo a aclamação na edição anterior do mesmo Jazz em Agosto (texto disponível aqui: https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-com-as-cordas-da-alma-darius-jones-fluxkit-vancouver.html). Contudo, iniciou a sua prestação de forma controlada; um sopro contido (embora seguro), intervenções curtas e espaçadas, pontuando a convergência da secção rítmica –  gente cúmplice (os dois, tocam juntos há um quarto de século), gente mais que competente e bem rodada. Senão, vejamos:

Chris Lightcap tocou com Butch Morris, Marc Ribot, Rob Brown, Anthony Braxton ou Joe Morris, entre vários outros (tem um par de discos bastante interessantes, “Deluxe”, de 2010, e “Epicenter”, de 2015, na editora portuguesa Clean Feed). Quanto a Gerald Cleaver, conta nas suas gravações com a presença de Craig Taborn, Tony Malaby, Joöelle Léandre, Louis Sclavis ou Larry Ochs (em 2020, num caminho completamente distinto, assinou um interessante álbum a solo, Signs, repleto de electrónica). Ambos demonstraram, noite fora, uma agilidade assinalável e uma dinâmica de grupo (embora com espaços para solos de cada um) que ajudou a noite a vingar.

Passados os dois primeiros temas, “We Outside” e “Another Kind of Forever”, Jones dirigiu-se ao público, anunciando a peça seguinte, “We Inside Now”. Mas, fez mais, pediu que, quem quisesse, se aproximasse do centro do palco, podendo sentar-se no chão, mesmo junto aos músicos, potenciando a comunhão pretendida. Pediu mesmo aos seguranças para não impedirem a movimentação.

Quem já frequentava o Jazz em Agosto na década de 80, recorda certamente o formato antigo, com um estrado em semi-círculo, mesmo junto ao palco. Pois, foi essa imagem que regressou dos confins da memória, como se numa espécie de realidades temporais distintas tivesse havido um cruzamento.

Jones começou então uma balada intensa, os seus dois comparsas correspondendo devotamente, com o público a anuir. Um, outro, outro, outro… vários, adultos e crianças. Bonito, sim senhor. O ritmo sincopado vai tomando conta da atmosfera e a felicidade do momento contagia o saxofone. Algo mudou a partir dali.

Quando o tema terminou, a equipa da FCG apressa-se a “convidar” todos a regressarem aos seus lugares, no anfiteatro, dando por terminada a “experiência”. Jones agradece, saúda, e apresenta o tema seguinte, dedicado ao tio, libertado há pouco da prisão, “um homem complicado”, responsável pelos primeiros incitamentos ao sobrinho para a dedicação ao saxofone. “Motherfuckin Roosevelt” é o título e é já um homem diferente quem agora escutamos, sentado, manipulando com gosto o seu saxofone, mais interventivo, tudo começando com um toque de blues, para a intensidade se ir consolidando, com os três perfeitamente alinhados. Darius Jones discursa, musicalmente falando, amigavelmente, mas com entrega e segurança. Não restem dúvidas: este homem é um sentimental.

Jones anuncia o último tema. Trata-se de um antigo blues, cuja génese está associada à escravidão, a versão de Henry Jimpson Wllace foi gravada numa penitenciária por Alan Lomax, um dos grandes arquivistas musicais americanos. Chama-se “No More, My Lord” (vale a pena procurarem a versão cantada, na Internet) e a tensão que os três alimentam rapidamente desemboca numa liberdade completamente distinta da fase inicial do concerto. Há agora uma influência nítida do Jazz dos anos 60, da espiritualidade e liberdade que pautavam os caminhos da música americana por esses dias. Não chegando a ser Free Jazz, a respiração é outra, os dedos de Chris Lightcap movem-se com mais energia e os pratos de Gerald Cleaver fazem-se ouvir distintamente.

D

epois de um forte aplauso colectivo, a saída de cena é meramente circunstancial, os músicos regressam para um encore mais que apetecido. O tema reservado é “Affirmation Needed”, com Jones a espraiar-se em solos felizes, explorando uma gama razoável de agudos, saltitando por entre escalas. E também nós saímos do jardim com um sorriso no rosto.

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