Jazz em Agosto 2025 – Aceleradores de partículas… sonoras (Mariam Rezaei)

Jazz em Agosto 20205 – Aceleradores de partículas… sonoras (Mariam Rezaei)

Um trio predisposto a testar os limites audiófilos da assistência. Um furacão. Energia e improvisação. Electrónica sem vergonha. E tudo isto a resultar. Mariam Rezaei conduziu a carruagem e nós confiámos. Fizemos bem.

Texto: João Morales

Fotos: Petra Cvelbar – Gulbenkian Música

O concerto mais surpreendente desta edição do Jazz em Agosto. Domingo, dia 3, 18h 30. Mariam Rezaei (inglesa, n. 1984) entra em placo e toma o seu lugar ao centro, junto dos seus gira-discos e parafernália electrónica. A sala – muito bem preenchida – é invadida por uma variante de Ry Cooder, devidamente contaminado por um ambiente sónico. A distorção e a manipulação ganham terreno, o território noise insinua-se e há momentos em que uma movimentação circular toma o rumo dos acontecimentos.

A gestão dos sons, incluindo de instrumentos de sopro, ou até mesmo vozes humanas, devidamente fragmentados e novamente reagrupados, concede novos sentidos ao material sonoro original. Rezaei é, simultaneamente, engenheira e operária desta construção. Eisenstein defendia que o verdadeiro filme se constrói na sala de montagem – aqui, essa visão ganha defensores, transpondo o conceito para a dimensão musical.

Juntam-se os seus dois cúmplices em palco. Julien Desprez é um guitarrista francês deveras original, cujo percurso dos primeiros anos conta com a cumplicidade de Charlie Haden, Louis Sclavis, Han Bennink, Rob Mazurek, Noël Ackchoté, David Grubbs ou Marc Ducret. E já deu mostras neste mesmo festival da sua inventividade: se, ainda em 2024 esteve por cá integrando a Fire! Orchestra de Mats Gustafsson (velho companheiro dos palcos), quem se recorda da Coax Orchestra, em 2017, sabe bem do que ele é capaz (podem ler a reportagem aqui: https://branmorrighan.com/2017/07/coax-orchestra-jazz-em-agosto-2017.html).

O terceiro elemento é o austríaco Lukas König (n. 1988), sentado à bateria e com a ajuda de alguma amplificação poderosa. Reggie Washington, Steven Bernstein, Jamaaladeen Tacuma, Briggan Krauss, David Murray ou Elliott Sharp são alguns dos nomes com quem já trabalhou, potenciando a relação entre a bateria e as possibilidades que a electrónica lhe proporciona, numa abordagem que tanto deve ao gore como aos caminhos trilhados por Günter Müller (o homem por detrás da chancela for4ears).

Reunida a trindade, revela-se na sua plenitude a dimensão avassaladora que nos vai transportar sem tréguas, evocando a cada instante um melting pot onde cabem Christian Marclay, Napalm Death, Sonic Youth, Massacre (de Fred Frith), Tim Hodkinson e muitas outras intensas aventuras sonoras.

Desprez percute a guitarra, não é apenas pelo dedilhar das cordas que executa o que pretende. Em completo êxtase, o braço do instrumento, os botões de afinação, os carrilhões, tudo é território válido. As pernas executam uma dança fervorosa, pela qual vai alternando os pedais que usa (uma peça fundamental da sua linguagem distintiva), a uma velocidade considerável.

König despeja energia e ritmos marciais, não poupando nenhuma das peças da bateria, como um vulcão compassado e impiedoso. Na parte final do concerto, dará especial atenção à tarola, o que confere uma dimensão um pouco mais acústica sua prestação. E Rezaei, visivelmente feliz, veleja por uma autoestrada sonora que vai construindo com os sons alheios que reorganiza, tudo conduzido com mestria, sem tréguas para a audiência (que, diga-se em abono da verdade, também não saberia o que fazer com elas).

Não houve quaisquer paragens durante o concerto, a prestação assentou numa contínua evolução, a função durou uma hora – que passou num ápice e sem tempos mortos – no final da qual a sala não poupou (mais que merecidos) aplausos e outras manifestações de apreço. Já todos ouvimos falar do acelerador de partículas, ficámos a conhecer a versão musical.

«Como posso fazer o gira-discos soar tão extremo como Roscoe Michell ou Peter Brötzmann?», reflectia Rezaei numa entrevista à Wire, em 2023. Bom, pelo que pudemos assistir, encontrou o seu caminho.

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

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