“Recomeçar. Partir do zero novamente. Quantas vezes desejamos que tal seja possível? Até onde vai a crença de que somos dotados de uma borracha mental que nos esvazia a mente, permitindo-nos reescrever a nossa própria história? É uma fome de inocência e ignorância que sabemos que jamais será possível de saciar. O sabido e sentido não desaparece, apenas atenua. O conhecimento não evapora, paira apenas qual fumo persistente à espera de ser novamente inalado.
Um pé à frente do outro. Um dia de cada vez. O dormir e acordar, o tempo passar e com ele nos deixarmos levar. Esperar. Esperar que no segundo seguinte algo mude, que no minuto seguinte sejamos diferentes, que na hora seguinte tudo não tenha passado de um sonho tenebroso, porém passageiro. Mas não é assim. São gritos mudos de uma alma reprimida, são ecos de sentimentos recalcados e sombras de uma consciência que se arrasta qual grilhão de tonelada preso às nossas pernas.
Queremos esquecer. Esquecer que um dia tomámos aquela decisão, que um dia nos deixámos levar, mesmo contra todos os nossos avisos interiores. Esquecer que por nos julgarmos livres e independentes de tudo e todos nos tornámos seres desassossegados de sangue fervilhante e em estado de alerta constante. Esquecer que nas nossas próprias mãos quebrámos ao som de espelhos a partir em que ao olharmos para os reminiscentes somos confrontados com os nossos erros, com a nossa fragilidade e carência do mundo.
Na ânsia de ser, esquecemo-nos de viver, nessa esperança maldita e impossível de que o recomeçar será como renascer, qual rebento sem mácula. Deixamos que nada aconteça, que os apetites esmoreçam e a vontade fuja. Castigamo-nos sobre a alçada de que seremos melhor depois de uma morte etérea e efémera dos nossos pecados. Dançamos sobre estacas, saltamos sobre facas, tropeçamos nas lombas da verdade – recomeçar é aceitar as imperfeições, aprender a viver com elas e seguir em frente. Sem milagres. Sem curas instantâneas. Apenas o querer mais forte do que a comiseração. O levantar depois de sermos atirados para o fundo do poço.
O dia zero é o dia do nosso nascimento. A partir de então tudo conta, nada desaparece. Podemos reprimir, podemos colocar pedras imaginárias sobre as coisas e suprimir as memórias, mas mais cedo ou mais tarde seremos confrontados com elas e há que estar sempre preparado. Há que dar cor, forma e sentido ao nosso ser. Perceber que a vida não é a preto e branco e que haverão sempre tons escuros e claros, cuja combinação e harmonia apenas depende de nós. Recomeçar é aceitarmo-nos a nós mesmos e às nossas imperfeições e ainda assim buscarmos sem cessar novas soluções, novas decisões que nos façam evoluir e ser mais. Recomeçar é partir e ficar, seguir e não mais voltar.”
Morrighan 14/10/2013 00h21
Gostei muito do texto, sobretudo a última frase 🙂