“O vento e chuva fustigam as portadas da casa. Está um daqueles dias perfeitos de Inverno, com a sua dose de frio a pedir a lareira acesa. A árvore de Natal está pronta, em tons de dourado e prateado, umas quantas bolas de chocolate espalhadas a serem confundidas com bolas verdadeiras e que eu adoro surripiar e os presentes já estão à sua volta conferindo-lhe o ar de tentação de chegar ali e revelar todos os segredos que esconde!
Por mais anos que passem, chegar a casa dos meus pais para o jantar de Natal terá sempre a sua mística. O ritual acaba por ser sagrado à sua maneira. O bacalhau nunca pode faltar, a couve portuguesa também não e depois discute-se se este ano se coze a batata com pele ou não. Acaba-se sempre por se fazer o mesmo, ou seja, cozer parte com pele e parte sem pele. O mesmo acontece sobre a crise existencial do azeite virgem ou azeite com alho partido aos bocadinhos. Acabam por ir também os dois para a mesa. São os pratos e os talheres que se usam apenas nesta altura do ano, os diferentes talheres e copos para satisfazer as diferentes partes da refeição e depois dos cumprimentos habituais e das perguntas, maioritariamente inconvenientes, feitas e, relutantemente, respondidas, lá nos sentamos todos à mesa.
Normalmente, somos entre seis a oito pessoas, consoante a vez que calha de cada um passar com que parte da família. Este ano fomos brindados com mais um espacinho para um ser recente que é o sorriso e a alegria de toda a gente esta noite. O meu pequenino sobrinho de oito meses não ocupou espaço à mesa, mas ocupou as nossas conversas e pensamentos. A forma como se está a desenvolver tão rapidamente e o olhar inteligente que já nos deita quando o fitamos é de ficarmos deleitados. Não é de grandes interacções, mas sorri quando menos esperamos e não gosta de ser ignorado durante muito tempo. De resto fui eu, os meus pais, a minha avó, o meu irmão e a minha cunhada. Poucos, mas bons, como eu costumo dizer.
Já lá vão os tempos em que enchíamos a mesa para quase vinte pessoas. Os tempos mudaram, alguns elementos-chave da família faleceram, e o espírito natalício acabou por sofrer um pouco com isso também. Ainda assim, o serão é muito agradável. Oscilando entre as perguntas sobre o bebé, o novo emprego do meu irmão e a saúde da minha avó, lá se lembraram, de repente, de falar sobre a minha vida amorosa. Desde que o meu último, e único, relacionamento acabou, há mais de dois anos, que todos parecem andar ansiosos. Dizem que é só preocupação, que a solidão me pode fazer mal, que só se preocupam com o meu bem-estar. Perguntam se entre os meus colegas do trabalho ou da faculdade não há nenhum que me desperte a atenção. Questionam-me, quase à laia da crítica, há quanto tempo não saio eu com alguém! Sou mordaz na resposta e acabo com esse tema ali mesmo.
Não sabem de ti, nem eu quero que saibam. Deixo-os a remoerem na sua própria curiosidade. A minha cunhada parece ser a única que compreende que talvez eu não queira falar disso, que preciso do mesmo espaço. Abençoadamente, sugere irmos buscar os doces, que o tempo passa e dali a uma hora é altura de se abrir os presentes.
Deixo a minha mente divagar pelas últimas semanas. Relembro a forma inesperada como me cruzei contigo num dos corredores da empresa que colabora no meu doutoramento. Era a segunda vez que lá ia e ainda não estava familiarizada com o espaço. Sentia-me ansiosa. A reunião era com o director executivo do projecto que me fornecia os dados de que eu precisava, e eu ia apresentar o primeiro protótipo para o seu processamento e tratamento. Lembro-me de caminhar cautelosamente, com medo de me perder ou de ir bater ao gabinete errado. Os passos pareciam-me certos e quando cheguei àquela porta com as iniciais do director, respirei fundo, bati e abri um pouco a porta. Quando espreitei para dentro da sala, não era ele quem lá estava, mas tu! Estavas inclinado sobre um papel, a rabiscar furiosamente qualquer coisa, apesar de aparentares um ar sereno. Não deste conta da minha invasão e eu retrocedi para ter a certeza de que era mesmo aquela sala, e era. Voltei a entrar e tossiquei, em tom de chamada de atenção. Deste um pequeno salto na cadeira, levantaste a cabeça e olhaste-me directamente nos olhos. Baque. Credo, como te achei lindo naquela altura. Logo a seguir praguejei mentalmente, tinha que me focar.
Apertam-me o braço. “Então, estás na lua? O pai está a tirar os cafés, vem ajudar a trazer os bolos.” Raios! Interrompo o meu devaneio e levanto-me para ir à cozinha regalar os olhos com a quantidade e aspecto dos doces de Natal. Eu fui a mais preguiçosa e em vez de fazer um, como era suposto, levei um daqueles troncos de Natal lindíssimos, de nos fazer babar nas montras, e um bolo-rei de chocolate com frutos secos. A minha mãe e avó trataram dos bolinhos de abóbora, rabanadas, bolo de noz, canela e abóbora, aletria, arroz doce e pudim; o meu irmão e a minha cunhada trouxeram o bolo-rei e os frutos secos. Uma overdose autêntica de doces para tão poucas pessoas, mas o que é um Natal sem umas horas impróprias para diabéticos?
É quando me trazem o chá e me entretenho com uma fatia de bolo-rei, enquanto eles discutem as políticas actuais, que volto às memórias daquele dia. Depois de respirar fundo, lá ganhei coragem para perguntar pelo director, ao que tu me respondeste que, naquele dia e excepcionalmente, serias tu a dirigir a reunião, que ele se encontrava doente. Voltei a praguejar. Como é que era suposto concentrar-me com alguém que, ineditamente desde há tantos meses, mexia comigo de forma tão intensa? Reuni toda a concentração que me era possível e lá apresentei o protótipo que tinha construído. Quando acabei, deste-me os parabéns e perguntaste-me se, a título não oficial, não gostaria de ir almoçar contigo e falar-te mais sobre o projecto e trabalho que andava a desenvolver. Que apesar de teres sido tu a orientar então a reunião, que só ias servir de mensageiro por não estares directamente enquadrado no mesmo. Achei-te ousado, mas acabaste o convite com um sorriso tão impossivelmente encantador que tive de aceitar. A esse almoço seguiu-se um café uns dias depois, ao que se seguiu um jantar na semana seguinte, enfim. Desde então que tens entrado na minha vida aos poucos e aquecido o meu coração que parecia já fossilizado.
Chegou a hora de abrir as prendas! Como está tudo ansioso, nem parecemos adultos! Que ao menos fique essa réstia de criança em nós para tornar a noite diferente. É uma sensação boa, calorosa, a partilha da união e a certeza de que aconteça o que acontecer estamos ali uns para os outros. Posso não ter uma família numerosa, mas sou uma sortuda, sei que sou amada incondicionalmente por ela, mesmo com todas as particularidade e peculiaridades inerentes. Que família é que não as tem? Este ano foi a minha cunhada a Mãe Natal. Canta os nomes e lá vai cada um rasgando os papéis e sorrindo a cada par de meias ou cuecas tradicionais que aparecem todos os anos debaixo da árvore. Mas há mais, claro! Um perfume aqui, um conjunto de cachecol e luvas ali, uns cremes de corpo acolá, etc. A mim calhou-me uma pulseira muito bonita, de prata, oferecida pelo meu irmão e cunhada, uma camisola de lã oferecida pelos meus pais, e um kit de sobrevivência baseado em chocolates da minha avó! Tão engraçadinha que ela é!
Está quase na hora de ir embora. O tempo passou sem darmos conta e já são quase duas da manhã. Tenho a tua prenda lá em casa. Era para ta ter dado hoje, mas entre compras de última hora, à bom português, e o ajudar em casa dos meus pais, acabei por apenas te telefonar a desejar bom Natal. Perguntaste-me se não poderia estar contigo ainda hoje ou no máximo amanhã. Expliquei-te que, infelizmente, hoje seria impossível por sair tarde da casa dos pais, mas que amanhã à noite, talvez conseguisse. O almoço de Natal seria em casa do meu irmão e, como tal, tentaria sair a tempo de ainda estar contigo. Pareceste-me um pouco desiludido, tendo na mesma desejado-me um óptimo Natal e acabando com uma demonstração de afecto muito querida. Retribuí e desliguei de coração apertado, esperando ansiosamente pelo dia seguinte.
Depois de muitos abraços e beijinhos, lá nos despedimos todos. Desci no elevador com o meu irmão, com a minha cunhada e com o meu sobrinho, separando-me deles ao chegarmos aos carros. O caminho foi solitário, mas rápido. Estaciono em frente à porta do meu prédio e dou conta de alguém sentado nas escadas cá fora, ao frio. Valha a entrada ser coberta, pensei eu nessa altura, por causa da chuva. Caminho cautelosamente e assim que meto o primeiro pé no degrau, o vulto levanta-se, assustando-me. Acho que soltei um gritinho, para logo a seguir me desmanchar a rir. O vulto eras tu. “Não podia deixar passar esta noite sem estar contigo, desculpa.” Sorrio, sem dizer mais nada. Subo o resto das escadas e abro a porta, convidando-te a entrar. Noto que estás ansioso, hesitas por um momento, quase imperceptível, e acabas por me seguir. A subida é silenciosa, mas sôfrega. Não tinha dado conta de já ter tantas saudades tuas. Abro a porta do meu apartamento e entramos. Estamos os dois nervosos, como é que é possível? Nunca tinhas entrado em minha casa, tinhas apenas deixado-me à porta depois de passeios e outros encontros. Convido-te para te sentares no sofá enquanto acendo a lareira. O apartamento é simples, um quarto, uma sala com uma pequena lareira num dos cantos, uma cozinha e uma casa de banho. Não tenho vergonha da simplicidade, pelo contrário, ao menos é um espaço meu. E por ser meu sinto-me na minha zona de conforto e talvez um pouco mais audaz. A lareira já crepita e eu estou na cozinha a preparar um petisco, proponho-te abrirmos uma garrafa de vinho. Vens ter comigo à cozinha, viras-me para ti e beijas-me uma vez mais. Venham os queijos e os vinhos, as mantas no chão da sala e o filme. A nossa ceia de Natal só agora vai começar por completo.”
Morrighan – 23h00