Escritos Aleatórios #40 – Célio Dias

O tempo é como o vento que nos acaricia no final de uma tarde de Verão à beira de um mar ameno. Faz-nos promessas, enche-nos de esperança, ilude-nos. No entanto, quando lhe imploramos que se prolongue e nos embebede com o licor que nos enlouquece a alma, revela-nos a sua verdadeira essência. Tapa-nos os ouvidos e continua altivo o seu percurso sem nos deitar uma derradeira espreitadela por cima do ombro. É neste momento que lembramos que este passa apenas uma vez, deixando-nos apenas a recordação do tempo em que passou. Neste ponto não somos diferentes da criança na qual se desenha uma curva suplicante que anseia por mais um quadrado daquele chocolate guloso que lhe é impiedosamente negado. 

Enquanto o vento nos invade o rosto, mergulhamos num estado que confere não só sentido ao Universo como à nossa própria existência. Para ampliar a sensação de fruição, fechamos gentilmente os olhos, com a candura de que tudo dura para sempre. Desejamos que aquela atmosfera nos sature o espírito com tranquilidade de um bater de asas de uma linda borboleta… Até àquele instante em que o vento, sem a nossa autorização, interrompe a sua exibição e nos empurra para a realidade. É por isso que eu detesto o Verão, o mar, o vento e principalmente o Amor. Para mim não passam de personagens que nos entretêm, enfeitiçam-nos a consciência e nos fazem acreditar numa vida de utopia. Já estou no estado de desenvolvimento humano em que todas as criaturas conscientes deveriam estar se fossem corajosas o suficiente; a verdade para mim está tão nua como está um pedaço de carne imóvel para o mosquito durante a noite. Todos os sentimentos deleite não são mais do que comerciantes desonestos e hipócritas. Embebedam-nos a razão, recitam lindos poemas e encantam-nos com as mais fascinantes cantigas para no final nos roubarem a atenção para a única certeza da existência, a Morte. Esta é a única que é real. Amarga-nos o pensamento, envenena-nos o coração, mas é a única das personagens que nos revela os recônditos do seu Ser. Mas nós nunca gostamos que nos firam a suscetibilidade, preferimos uma doce mentira e é por esta razão que relegamos a Morte para o papel de figurante, quando é ela a rainha te toda a ação. 

Quando acordo de manhã olho-me ao espelho. O meu rosto é como uma rocha que ao longo dos anos perdeu a sua textura e vigor. Consigo sentir as fissuras que o tempo cravou na minha pele, as marcas que a mágoa da tua partida me deixou. A tua ausência aguçou-me o discernimento de tal modo que não desejo que o tempo maldito recue, já não sou ingénuo. Só desejo que chegue a minha hora, em que me vai ser sugada toda a vitalidade até à última gota de vida que exista em mim. Desde que partiste, que afastei-me de tudo o que tinha o teu toque, o teu perfume, a tua voz. O nosso apartamento só me confundia o juízo. Sentia-me com um pescador a navegar na sua velha embarcação pelo mar das tuas recordações num dia de nevoeiro à procura desesperadamente do farol para que soubesse que direcção tomar. Mas todas as vezes em que procurava por ti, tu que eras a luz do meu caminho, não te encontrava. Apenas encontrava fragmentos e testemunhos da tua efémera passagem pelos meus braços que pensava serem como uma alta muralha que te protegia de todos os males. Como estava enganado… Agora vivo num mundo de angústia, que me atormenta à noite, que me faz suar e tremer de horror. Mas que ao menos é real e não é ficção ou novela como era todo a aquela paixão.

Hoje acordei e esbocei aquilo que me pareceu ser um sorriso. Procedi de tal modo porque todo o cenário invernal que via através da janela não era mais do que uma extensão do meu interior para um meio que me era externo. Senti que o tempo me compreendia, que o céu fazia luto e chorava as lágrimas que já não se fazem rolar pelas minhas bochechas; aquelas mesmas em que tu me davas beijos repicados. A água que diziam que conferiam ao meu olhar um certo mistério toda ela está congelada, nele agora só paira a sombra de uma realidade que me era escondida. Não sinto forças para mudar o meu Fado. Já não sou aquele curso de água que descobre um novo caminho quando encontra a adversidade, aceito simplesmente que tudo está inevitavelmente determinado. No entanto, o meu cérebro ainda me prega rasteiras como as miragens que traem os homens ávidos pelo líquido da vida no deserto. Enquanto observava a tempestade, reparei que no jardim havia uma rosa vermelha que resistia à fúria do temporal. Tentei imediatamente desfiar o meu olhar, a sua beleza não era mais do que uma cascavel que me tentava cativar a atenção. Afastei-me da janela, mas no momento em que lhe deitei uma derradeira espreitadela uma nova dimensão inundou subtilmente o meu estado consciente, atirando para o conforto das tuas recordações. A cor de sangue das suas pétalas era a mesma de que eram pintados os teus inocentes lábios calorosos; a fragilidade com que bailava ao compasso do vento transportou-me para aqueles tempos em que dançavas para mim em todo o teu movimento mágico preenchia a minha existência; o caule elegante daquela flor recordou-me as tuas pernas maciças e leitosas que eu contemplava como se fossem a minha lua cheia num céu preenchido de estrelas. Senti novamente aquele fogo que me erubescia a face quando as minhas mãos tocavam na tua pele nua e soltavas aqueles gemidos que me faziam tremer as entranhas. Estava perdido no teu corpo, quando a pobre rosa não consegui resistir e foi levada de uma só vez. Imaginei a dor que aquele pedaço de terra sentiu. A brutalidade deste acontecimento descongelou o fluxo de água que a constante reminiscência da tua partida cessou. Fui chutado para a sala gelada na qual as sombras dos objectos dançavam ao ritmo trepidante da chama do círio. Senti-me mais uma vez enganado, revoltado… Eu não te disse que tudo nesta vida é uma distracção para os fatos reais. Não te disse! Desejei ter forças para aniquilar o mundo, para acabar com todos esses sentimentos fantasiosos com um só disparo. A minha visão estava perturbada pelas gotas cristalinas que eram não mais do que a expressão da minha saudade por ti. De repente, invadiu-me um peso brutal. As minhas pernas não aguentaram, desfaleci. 

Agora estou aqui atirado no chão e não me sinto mais importante que uma pedra que é lançada para o fundo do mar, só sinto o sal nos lábios. Sonhei com o Alberto, viu contemplar o céu e tenho a certeza que o olhava só por olhar, sem procurar significados ou associações. Contemplava-o do cimo da colina com aquele olhar desinteressado que lhe era característico. Decerto que não aprendi as suas lições, não consigo bloquear o afluxo de informação que domina a minha mente. Para mim aquela rosa lembrou-me a tua fragilidade, para o Alberto aquela rosa seria apenas uma rosa. Detesto esta condição servil a que o nosso cérebro submete o nosso olhar. Cada vez que tento analisar algo num esforço desinteressado, vejo o objetco a adquirir os contornos da tua silhueta; estás por toda a parte. Tudo seria mais fácil se tivesse a atenção desatenta e a preocupação despreocupada do meu amigo Alberto, que não procura ir para além daquilo que as coisas são e se permite apenas a dedilhar as suas linhas visíveis. Porque afinal de contas tu já não existes, tudo o que existe é o tédio e a Morte.

Célio Dias

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2 Comentários
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Anónimo
Anónimo
10 anos atrás

Muito bom, queria saber o autor deste texto, se este tiver algum blog.

Morrighan
Morrighan
10 anos atrás

Bom dia,

Posso falar com o autor para saber se ele pode deixar algum mail de contacto. Ele não tem nenhum blogue, irá escrever sempre ocasionalmente para este.

  • Sobre

    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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