Passei 2014 entre cá e lá, entre as novidades quase constantes de hoje e a descoberta permanente e quase sempre surpreendente de ontem. Posto no papel, tudo isto soa lamechas e pretensioso, mas passei 2014 a sentir mais do que nunca que só me vai ser possível compreender o presente quando começar a compreender o passado. Claro que assimilar (ou pelo menos ouvir) tudo o que foi feito até agora é um exercício imenso, impossivel até, mas é bom olhar para trás e perceber quase sempre que de alguma forma o passado se reflecte no presente. Por isso, e porque isto já vai longo, deixo-vos cinco músicas de ontem e cinco de hoje, sem qualquer relação entre si para além de me terem viciado desde a primeira audição.
Morbus Chron – Towards a Dark Sky: Salvo uma mão cheia de excepções, deixei de ouvir metal com a regularidade diária de há uns quatro ou cinco anos atrás. Ainda não sei se fiz bem ou mal, mas se serviu para algo, foi para dar espaço à saudade das sonoridades mais pesadas. A coisa durou pouco, porque os Morbus Chron apareceram com a conta, peso e medida certos para acabar com essa saudade. Death-metal com laivos lisérgicos (suaves) que vai para lá da velocidade e das mil notas por segundo, alicerçado numa produção old-school q.b. e um ambiente que aqui e ali roça o sufocante. Obrigatório.
Panda Bear – Boys Latin: Há algum tempo que vejo nos Animal Collective um porto seguro e colorido, mas nos últimos quatro ou cino anos só tenho amor para um deles. Noah Lennox, ou Panda Bear, tem feito alguns dos discos mais deliciosos e aventureiros dos 00 e este “Meets the Grimp Reaper” não é excepção. É mais dançável e procura mais a batida que os seus predecessores – muito mais ocupados com a melodia e a orquestração –, mas não renega, nem esconde as suas principais influências. “Boys Latin” é suave, divertida, melódica e um dos pontos altos do ano que ainda aí vem.
Kyle Bobby Dunn – The Hungover: Algumas revistas e sítios da especialidade dizem que a ascensão da música ambiental é um dos momentos altos de 2014 e eu concordo, mas se regressarmos alguns anos no tempo encontramos o mesmo nivel de serenidade e desafio que ouvimos em mil tapes e demos de 2014. Mais que um homem, Kyle Bobby Dunn parece ser uma súmula de sentimentos, oscilando entre a serenidade tremenda, a paz que nunca termina e as paisagens e texturas que se desenrolam e formam à nossa frente sem pressa. Acima de tudo sem pressa.
Negra Branca – Duro: A grande vitória de Negra Branca é fazer música que soa tão bem depois de uma noite fumarenta, como na manhã seguinte em plena ressaca. Longe do mundo exploratório dos Gnod, mais perto do som intrigante de gente como Hype Williams, FKA Twigs ou Yong Yong, Marlene Ribeiro tem em Negra Branca um espelho para a introspecção. Aqui, a pop melíflua é diluída na quantidade certa de melancolia para criar alguns dos temas mais bonitos (e hipnotizantes) do ano. Este “Duro” não foge ao nome que, mas permeia-o com algo doce que parece chamar-nos para um doce embalo de onde não vamos querer sair tão cedo.
Gala Drop – You and I: Seis anos à espera de um novo disco de Gala Drop valem a pena quando o resultado de todo este tempo é “II”. Reformulados, com novo vigor e uma visão ainda mais alargada que os geniais “Gala Drop” e “Broda”, ‘You and I’ resume em seis minutos tudo aquilo que os Gala Drop são capazes: tropicalismo, dub e uma voz portentosa que estremece, arrepia e aquece – tudo ao mesmo tempo. Vão por aqui.
Pedro Abrunhosa – Não Tenho Mão em Mim: O “Viagens” é um disco relativamente único em Portugal e a sua importância (mesmo sendo do Pedro Abrunhosa), é atestada pela sua vitalidade e frescura 20 anos depois do seu lançamento. Lembro-me de se cantar a “Socorro” na primária – tinha eu seis ou sete anos – e apesar de só lhe ter voltado uns bons quinze anos mais tarde, soou-me tão infecciosa e vigorosa como na altura. É bom de ver como o disco sobreviveu à erosão do tempo e da memória para crescer em direcção à intemporalidade. O groove, a infusão de estilos, o atrevimento seguro com que o disco aborda o jazz, o funk e o hip-hop ajudam o disco a brilhar mais forte.
John Coltrane – India (C): Sou um sucker por jazz, principalmente o mais rasgado e tocado com aquela rispidez não de fúria, mas de um transe engatado e imparável. O Miles, o Hancock, o Ornette e até a Alice são todos eles gigantes que eu admiro e respeito, mas sinto que ninguém suplanta o Coltrane e a sua banda quando chega a altura de jammar. Aqui com o subtil McCoy Tyner, o metronímico e arrebatador elvin jones e o irrequieto Eric Dolphy, o Coltrane canaliza mil espíritos que nos guiam por mil outros lugares numa jam feita quase de certeza de olhos fechados e cabeça em constante movimento.
Terry Riley – Rainbow in Curved Air: Este deve ser o disco que mais consumi nos últimos dois anos. É uma peça minimalista e, ainda assim, é muito mais rica do que o seu estilo pressupõe. Nas duas faixas que compõem este disco, Terry parece mais preocupado em traduzir em notas as cores e os sentimentos que o rodeiam, do que em criar uma peça musical no seu sentido mais clássico – e ainda bem! Tenho-lhe um apego demasiado grande para arriscar traduzi-lo em palavras, por isso vou-me limitar a dizer que este disco é como uma almofada de que precisamos para dormir bem.
Uku Kuut – Vision of Estonia: O ano é 1985 e Uku Kuut, então com 19 anos, entrava em estúdio acompanhado de uma miríade demasiado vasta de sintetizadores, órgãos, sequenciadores e outros adereços que o próprio admite serem demasiados, para gravar um delicioso tema de quatro minutos chamado “Vision of Estonia”. Para alguém nascido em plena União Soviética e depois criado na Suécia e nos Estados Unidos, seria de esperar que uma certa nostalgia ou melancolia permeassem o tema, mas o que se ouve aqui é uma composição transfonteiriça e feel good, quase drogada. Ouvido daqui, apetece dizer que foi feito tal como está a ser curtido: de olhos fechados e a viajar interiormente.
A Tribe Called Quest – Verses on the Abstract: Os Quest são os Quest, que são os Quest, que são os Quest, que são os Quest… Foram eles que me fizeram começar a gostar de hip-hop (agora tenho espaço e amor para dar ao DJ Screw, Three Six Mafia, e outros que um dia talvez apareçam noutra lista), primeiro pela escolha certeira de beats e pelo corte fino da samplagem, e depois pelo flow imparável e incomparável do Q-Tip (e pelas letras também, mas dessas falaremos depois). Esta malha em particular conta com o Ron Carter no contrabaixo – que segundo se conta só acedeu a tocar no “Low End Theory” se o álbum não incluísse profanidades, palavrões ou assuntos supérfluos -, mas podia e (devia) incluir aqui o disco todo e dançar ao som dele até ser de manhã.
António M. Silva é um dos fundadores da netlabel ZigurArtists e uma daquelas pessoas que cresceu a ouvir Phil Collins, Uriah Heep, David Bowie, Pink Floyd, Queen, Black Sabbath, Yes e uma série de “discos de pai” – o bom gosto é um dado adquirido. Enquanto companheiro de guerra nas lides da música, tem uma capacidade inata de contagiar as pessoas com a sua alegria e motivação. Sobre isto e muito mais, pois já me desfiz em elogios ao Tó anteriormente, podem ler na entrevista que deu há pouco tempo ao blogue e que se encontra aqui:
http://www.branmorrighan.com/2014/12/entrevista-antonio-m-silva-sobre.html
Só posso deixar o meu agradecimento, mais uma vez, por ele ser a pessoa fantástica que é.