Conheci os peixe:avião já eles estavam no seu quarto trabalho. Tinha acabado de sair o disco homónimo, marcando assim uma nova fase no processo criativo da banda. De cada um fazer tudo em casa para depois juntarem em estúdio, passaram a compor em conjunto. Mas as mudanças não se ficaram por aí, também a estética atravessou uma espécie de metamorfose e de canções com laivos coloridos passámos para músicas a entrarem num espectro monocromático. Em 2016, os peixe:avião editam o seu quinto disco – Peso Morto – e mergulham definitivamente na densidade mais sombria de todas as suas composições até hoje. A voz já não é tão cantada, mas antes texturizada, dos sons completamente limpos de Madrugada, passaram para sonoridades mais orgânicas em que pequenas imperfeições e experimentações se tornam motes de um disco que, na minha opinião, é o mais bem conseguido da banda até hoje. Depois de uma primeira entrevista feita em 2014, foi a vez de conversar novamente com o André Covas, um dos cinco elementos de peixe:avião, sobre todas estas coisas e mais algumas. É só continuarem a ler.
Fotografia Liliana Mendes e Duarte Costa |
Quando surgiu o disco 40:02 não houve dúvidas que os peixe:avião era uma banda a ter em conta no panorama musical nacional. Passados quase 8 anos não é demais dizer que o hype foi merecido, mas que o percurso tem sido tudo menos linear. Veja-se a diferença entre o disco que seguiu 40:02, o Madrugada, e agora este último Peso Morto. As cores desapareceram, as canções de voz limpa e composição mais pop também. Deu-se lugar a uma maior profundidade e à exploração de lugares mais sombrios. Pelo meio houve o disco homónimo que marca precisamente essa transição. «Esse disco acabou por marcar uma segunda fase da banda.»
A mudança deveu-se a uns quantos factores, começando pela composição: «No 40:02 e no Madrugada tínhamos um meio de compor muito próprio que era cada um fazia as coisas muito individualmente em casa e depois juntávamo-nos para juntar tudo e gravar. O trabalho era muito cerebral e individualista. Dávamos demasiado largas à imaginação para fazermos o que quiséssemos ao nível de composição. Ou seja, se quiséssemos gravar 10 pistas de guitarras diferentes numa música, ou 10 pistas de sintetizadores, podíamos fazê-lo porque estávamos em casa a compor quase como se fosse para uma orquestra.» A transição para o espectáculo ao vivo não era fácil: «Era difícil transpor o que estava no disco, havia músicas que nem sequer tocávamos.» A pressão de apresentar um bom segundo disco também teve a sua influência: «Existe sempre essa pressão, exagerada ou não, do segundo disco por ser um disco de concretização. No primeiro disco és uma promessa no segundo disco tens que ser um disco de certezas. E investimos muito nesse disco, talvez demasiado. Quisemos imprimir demasiadas coisas dentro de cada canção e acabou por ficar um disco muito saturado e não tão condizente com as nossas referências pessoais. Tínhamos a necessidade de fazer muita coisa e só resultou bem até certo ponto, para nós podia ter resultado melhor e achámos que tinha a ver com a nossa metodologia de trabalho.»
Abandonado o individualismo, decidiram então que era altura de começarem a compor em conjunto: «Após cinco ano de banda juntámo-nos todos na sala de ensaio e começámos a compor do nada, sem qualquer tipo de ideias pré-concebidas ou de balizas numa primeira fase.» Foi um processo longo, afinal três anos separam Madrugada de peixe:avião: «Tivemos que partir muita pedra, bater umas quantas vezes com a cabeça na parede. Foi um processo algo frustrante até conseguirmos conceber um som que sentíssemos que era aquilo que nós queríamos.» Dado o clique, a produção deu-se de forma célere e a partir daí o caminho tem sido contínuo: «O que resultou de peixe:avião foi um som muito mais negro, mais denso, mais textural. Deixámos a composição em computador e passámos a compor de guitarras na mão, directamente com os pedais, etc., e começámos a brincar muito mais com o som, tornando-o mais orgânico e mais visceral, mais físico. Às tantas consegues sacar sons mais com base em ruído e não tanto em notas e vais construindo a partir daí e em conjunto. Foi um disco muito mais coeso e muito mais de banda, por isso é que lhe quisemos dar o nome peixe:avião, talvez por ser o primeiro disco inteiramente de banda.»
O processo de composição acabou por não parar por ali e um acontecimento que acabou por reforçar esta nova metodologia foi o convite do Curtas Vila do Conde para musicar o clássico do cinema mudo “Ménilmontant”: «Pegando naquilo que vínhamos a desenvolver e depois tendo este novo desafio, continuámos a explorar a estética, agora completamente livres do formato canção – estamos a compor uma banda sonora e por isso não há limites temporais e estruturas a seguir, a estrutura é imposta pelo filme – isso obrigou-nos a repensar a nossa forma de escrever as músicas, as canções.» Deste exercício saíram ideias que foram muito importantes para Peso Morto: «Começámos a compor o Peso Morto ainda com essas ideias na cabeça.»
Fotografia Liliana Mendes e Duarte Costa |
Mesmo havendo uma clara transformação entre 40:02 e Madrugada, e peixe:avião e Peso Morto, a negritude passa mais pela estética e não tanto pelo estado de espírito da banda: «Não queremos passar uma imagem de negritude, ou o que quer que seja nesse sentido, simplesmente é uma imagem que é mais condizente com a estética musical do disco.»
De todos os discos, Peso Morto apresenta-se então como o mais soturno deles todos, sendo que o experimentalismo teve um papel fundamental na composição: «Foi um processo meio laboratorial, diria quase alquímico no sentido de experimentarmos coisas. Algumas coisas foram marcantes: o Pedro começou a ligar microfones de contacto à bateria, começou a passar o sinal da bateria a uma cadeia de pedais de guitarra e o som da bateria começou a sair por um amplificador de guitarra. O som que acabas por ouvir no disco é um misto de acústico da bateria com o som todo estragado da distorção, dos delays e reverbs resultante de ter passado pelo amplificador de guitarra. Quando começámos a ouvir essas coisas, novas ideias começaram a surgir. Houve uma música, a Torto, cuja base é uma gravação de telemóvel numa coluna estragada na sala de ensaio com o Pedro a tocar um timbalão distorcido a passar pela tal cadeia de pedais, e depois construímos a música sobre isso. Quando tens tudo numa sala de ensaios existem feedbacks constantes, uns volumes mais altos do que outros, etc., e nós tentámos tirar partido disso tudo. Também foi importante o sintetizador que o Luís teve emprestado durante algum tempo, o Synton Fenix, que deu origem ao nome da música Fénix, em que foram gravados uma série de sintetizadores com ele. Também gravámos na sala de ensaio com um telemóvel apontado para uma coluna estragada (risos) um teclado e uma bateria a fazer um loop muito simples. Ou seja, tudo foi surgindo de vários pontos diferentes e construindo a partir daí.»
Pode não haver a intenção de negritude, mas o próprio nome Peso Morto e a sequência de letras de músicas apontam para um caminho um pouco mais escuro: «As letras é o Ronaldo que as escreve e são até certo ponto livres de interpretação e até certo ponto autobiográficas – o que me deixa preocupado (risos). Estou a brincar! Mas as letras reflectem e são reflexo do intrumental. Normalmente surgem primeiro os instrumentais e depois as letras. O nome Peso Morto surge primeiro porque queríamos escolher como nome do disco o nome de uma das músicas do mesmo. Peso Morto suscitou-nos interesse não tanto pela carga simbólica que o nome tem – algo descartável, algo que é chato e literalmente um peso morto que mais valia não estar ali porque não está a fazer nada – mas mais pela questão do imaginário que está à volta dessa palavra. Uma coisa pesada, estanque, que não se mexe, escura. Achámos que isso e a capa seriam um bom papel de embrulho para o disco que está lá dentro.»
O que também mudou e que se nota ainda mais em Peso Morto é a forma como a voz de Ronaldo marca presença em cada música: «Antes a voz era assumida como de frontman, mas agora damos um tratamento muito mais sónico, muito mais diluído no instrumental, não lhe retirando importância nenhuma, atenção. Apenas é a estética que temos vindo a procurar.» Outra novidade é haver uma música só instrumental, mas o futuro não parece passar por aí: «Não nos vamos tornar numa banda instrumental, a voz será sempre uma componente essencial quanto mais não seja pela parte lírica, por isso é que fazemos sempre questão de ter as letras impressas em papel, porque são uma parte importante da própria identidade da banda. A voz é cada vez mais tratada como instrumento sim, e muitas das vezes nem sempre se percebe o que está a ser dito, daí darmos sempre as letras, mas a voz é uma componente sempre importante.»
Confesso que tendo apenas conhecido peixe:avião no disco homónimo, a impressão que tenho é que a transição acabou por ser bastante positiva: «Houve alguma insegurança nesse disco porque tanto podia ser bem recebido como podia ser um tiro no pé. Com este a mesma coisa, porque ainda é mais arriscado do que esse. Acho que isso se deve um bocado à experiência ao vivo.» E a verdade é que o próprio alinhamento da banda em palco mudou, sendo agora comum e já imagem de marca vê-los virados uns para os outros num processo de actuação muito mais colectivo: «Apesar de logisticamente o concerto parecer muito mais pesado, porque existe muito mais material em palco – cada um de nós toca uma série de instrumentos diferentes e tudo passa por amplificadores de guitarra em que tudo pode fazer feedback (risos) – o contrário acontece. É um concerto porque estamos muito mais libertos. A disposição em que tocamos e a forma como tocamos é igual à forma como compomos na nossa sala de ensaios. Ou seja, acaba por ter muito mais energia, até a própria música com bateria mais ritmadas, tudo. Acho que no fundo com este processo nos tornamos mais honestos com a nossa música e isso tem-nos dado mais concertos, mais divulgação e maior confiança.»
Ao vivo, Peso Morto já foi apresentado no Porto, no Rivoli com casa cheia e chega a Lisboa, ao Lux Frágil, a 18 de Fevereiro, 23:00, e a Braga, ao Theatro Circo, a 20 de Fevereiro, 21:30. O acesso ao concerto no Lux Frágil será feito mediante compra da edição CD de “Peso Morto” numa loja FNAC ou à porta na noite do concerto.
Foi sem dúvida uma bela conversa sobre um disco que rapidamente entrou nos meus favoritos.
Deixo-vos com alguns links que completam esta entrevista:
Primeira entrevista aos peixe:avião
http://www.branmorrighan.com/2014/08/entrevista-peixeaviao-banda-portuguesa.html
Single Quebra (de Peso Morto)
http://www.branmorrighan.com/2015/07/antena-3-avanca-novo-single-de-peixe.html
Single Miragem (de Peso Morto)
http://www.branmorrighan.com/2016/02/queres-e-letra-peixeaviao-miragem-novo.html