Roots Magic, aqui em formato de sexteto, encerraram o Jazz em Agosto 2021, na Fundação Calouste Gulbenkian. Bom trabalho de equipa, com dedicatórias especiais a alguns nomes emblemáticos e um olhar abrangente. Descontraído.
A mestria de cada um destes músicos, no entendimento que este projecto implica, passa por uma noção apurada de como defender uma voz própria sem trair a arquitectura global, como improvisar de forma viva e orgânica sem que isso provoque alguma disrupção face ao pano de fundo que faz as vezes de palco sonoro onde cada um deles actua. Designam-se Roots Magic e encerraram o Jazz em Agosto 2021, perfazendo uma espécie de moldura com o concerto de abertura do festival. É essa a magia das boas raízes, mesmo quando invisíveis, suportarem um crescimento saudável das ramificações emergentes.
Com três álbuns disponíveis na sempre atenta editora Clean Feed, os Roots Magic Passaram pelo Jazz im Goethe Garten, em 2017, e pelo Seixal Jazz, no ano seguinte, ambas as vezes em quarteto. Desta vez, a Alberto Popolla (clarinetes), Errico De Fabritiis (saxofone alto), Gianfranco Tedeschi (contrabaixo) e Fabrizio Spera (bateria) juntaram-se Francesco Lo Cascio (vibrafone) e Eugenio Colombo (flauta).
Assistimos a uma noite musical alimentada por uma dualidade consciente e sabiamente gerida, fazendo-nos passar de momentos de grande delicadeza, quase sempre mantidos pelo flautista Eugenio Colombo (colaborador habitual da Italian Instabile Orchestra), contando com a cumplicidade dos dois elementos da percussão, recorrendo sobejamente a sinos, metais, pequenos gongs e outros artefactos. O clima etéreo, a cadência de caravana em marcha, ganharam com essa opção. Contudo, a outra face da moeda foi a investida dos sopros, com Alberto Popolla a evidenciar alguma coordenação (como se via, por exemplo, nas passagens articuladas com Francesco Lo Cascio, ao qual instruía curtas indicações que pontuariam passagens). Colombo usou o saxofone soprano, no primeiro tema e no penúltimo, antes do encore.
Fabrizio Spera, que conta com uma lista impressionante de sumidades com quem já partilhou os palcos (incluindo Peter Kowald, Wadada Leo Smith, Butch Morris, ROVA, Tim Hodgkinson, Lol Coxhill, Alfred Harth, Evan Parker, Phil Minton, Alvin Curran ou Frank Gratkovski), mostrou-se sempre muito dinâmico, uma peça fundamental nessa transição entre os ambientes amenos e as dinâmicas mais possantes.
As linhas de orientação, traçaram rotas que denunciam passagens por África, Ásia, mas também os mares e ares do Pacífico, com uma base de latinidade, mais ou menos latente, em diversos momentos, acolhendo o ritmo para depois servirem de rampa de lançamento, recordando que, não apenas os blues, mas a o todo da espiritualidade negra que assombrou o Jazz, em especial na década de 60, não é um elemento de somenos nesta equação. O ritmo nunca foi renegado, num concerto que contou com passagens que poderiam remeter a memória para Cannoball Aderlely ou o New York Jazz Quartet
“Devil Got my Woman”, um blues originalmente composto e interpretado por Skip James, um dos músicos que esta formação homenageia em diversos momentos, e identifica como uma das suas influências seminais, foi um bom exemplo desse entendimento minucioso, que contemplou momentos onde a flauta de Colombo e o contrabaixo de Gianfranco Tedeschi vaguearam com subtileza, em prólogo à intervenção colectiva da gama de sopros, visitando até terrenos muito, muito próximos do jazz-rock, para tudo isso permitir chegar à tal improvisação, sem nunca macular a base rítmica.
De Marion Brown, saxofonista que integrou a gravação do histórico Ascension, de John Coltrane, trouxeram-nos “November Cotton Flower”, com reminiscências telúricas do sul americano e as suas plantações, teatralizadas numa discreta harmónica soprada por Errico De Fabritiis.
A herança de Chicago (ou não fosse de um dos seus mais ilustres representantes, justamente o Art Ensemble of Chicago, o mantra “great black music, ancient to the future”), assumiu-se e fulanizou-se em dois momentos altos do concerto, uma evocação a Muhal Richard Abrams, através do tema “Blue Lines”, e a Kalaparusha Maurice McIntyre, dedicando ao contrabaixista Milford Graves, falecido em Fevereiro deste ano, uma recriação do mítico “Humility in the Light of the Creator”, tema que titula o álbum de estreia do saxofonista, disco de 1969.
Um concerto muito interessante, repita-se, pela ligação que estabeleceu com a memória, embora de forma distinta do que os Broken Shadows fizeram na noite de abertura, porém, acima de tudo, pela forma orgânica como todos os elementos se relacionam e pelo respeito constante pelo ritmo, mesmo quando a voz é dada, em primeiro plano, a cada solista. Quando as raízes são de qualidade, devidamente acarinhadas, o jardim está seguro.