Recensão: Música Negra, de Leroi Jones, por João Morales

Música Negra, de Leroi Jones (Amiri Baraka; trad. de João Berhan; ilustr. de Francisco Vidal)

Sons que fotografaram almas

Os escritos de LeRoi Jones são proféticos e perspicazes. A forma como nos fala no nascimento do Free Jazz, que acompanhou em tempo real, é também uma abordagem sagaz ao papel da música como real forma de expressão colectiva.

João Morales

A páginas tantas, lemos: “Pharoah e Coltrane são farinha do mesmo saco, um saco onde vão cabendo cada vez mais músicos, mais do que Trane alguma vez poderia ter imaginado. Sanders está a ficar cada vez melhor, ainda vamos ouvir falar dele” e percebemos um dos pontos mais interessantes deste livro, primeira tradução para português, pela mão da editora Orfeu Negro (traduzido por João Berhan). Música Negra, de Leroi Jones (que assumiria mais tarde o nome de Amiri Baraka) é composto por diversos textos nascidos em pleno período criativo do mais disruptivo jazz que pautou a década de 60, a génese do Free Jazz, da integração da música como expressão de uma forma de estar, de um tempo e de uma condição, mais evidente na cor da pele, muito mais profunda do que isso. 

“Acho que foi Martin Williams o primeiro a dar-lhe esse nome, quando estávamos no Five Spot a curtir a primeira aparição de Ornette Coleman”, recorda Jones (1934-2014), teórico, crítico musical, poeta, declamador, activista, ensaísta, figura de proa da New Thing, a Nova Cena, designação a que se refere.

O fascínio destes textos, autêntico mergulho na História, reside na sua simplicidade. Escritos no “olho do furacão”, ou seja, no centro das movimentações artísticas da década de 60 que consolidaram o Jazz como uma música devedora de tensões e ambições, acabam por enformar também a relação entre a negritude e o país das oportunidades: «Uma das coisas mais desconcertantes acerca da América é o facto de, apesar do seu perfil essencialmente desprezível, continuar a conter tanta beleza. Talvez seja como muitos pensadores disseram: que é graças ao seu carácter desprezível, ou chamemos-lhe adverso, que tamanha beleza existe. (Para equilibrar?)», assim começa um escrito de 1964, que encerra com uma esclarecedora provocação: «E se tivermos Sonny [Rollins], Trane e Ornette Coleman a tocar ao mesmo tempo, podem parar de me dizer que Paris é que está na moda».

Para Jones, a música que está a nascer é um manifesto resultado das contingências sociais e de toda uma conjuntura sociológica, económica, política, que deixará marcas e imporá mudanças. «Tento explicar a «vanguarda»: homens para quem a história existe para ser utilizada nas suas vidas, na sua arte, para fazer algo para si próprios e não como lembrança avassaladora das pessoas e das ideias que viveram, antes deles”.

O devir do Jazz é apresentado como uma tradução do próprio devir histórico, indissociável das transformações da sociedade. A música nunca é apenas arte, mas antes uma emanação da sociedade em que nasce, causa e consequência. “A primeira música que os negros fizeram neste país tinha de ser africana; a sua subsequente transmutação para aquilo que conhecemos como Blues e o desenvolvimento paralelo do Jazz demonstraram a espantosa flexibilidade do seu carácter inicial (…) O blues foi a música afro-americana inicial; o bebop uma nova ênfase na tradição não-ocidental. E se o último nos salvou dos resquícios insípidos do Swing, a nova vanguarda – e John Coltrane – sozinhos, salvam-nos agora de uns anos 50 comparativamente enfadonhos”.

Através de vários destes textos, autêntica arqueologia da crítica musical, podemos encontrar algumas pistas para uma análise mais detalhada, aprofundada, de toda a questão que rodeia a improvisação no jazz, como numa análise extraordinária a um álbum mais ou menos obscuro de Gil Evans e a sua orquestra, Into the Hot, disco de 1962 que integra no seu alinhamento algumas composições de um seminal Cecil Taylor: “O Cecil é um solista fantástico, mas as suas composições demonstram até que ponto a sua música poderá ser preservada enquanto música anotada. Parece estar muito mais consciente da possibilidade de esta ser tocada por outros além de Coleman”. 

Sun Ra, Albert Ayler, Arche Shepp, John Tchicai, Burton Greene, a editora ESP, os lofts onde ocorrem improvisações informais, são outras referências que habitam estes textos. E há ainda outros dois motivos de forte interesse, que engrandecem de modo indiscutível esta edição.

O prefácio de Kalaf Epalanga (mais conhecido pela sua prestação nos Buraka Som Sistema) bem informado e contagiante, é uma óptima porta de entrada para o que se segue, não escondendo a devoção, revelando a importância do Jazz na formação do músico (e até encontramos uma alusão certeira ao mundo dos melómanos e das lojas de discos usados). Começa logo por evocar a noite de 1 de Agosto de 2201, quando Amiri Baraka se apresentou no Jazz em Agosto, da Fundação Calouste Gulbenkian, adequadamente acompanhado pelo New York Art Quartet (John Tchicai, no saxofone, Roswell Rudd, no trombone, Reggie Workman, contrabaixo, e Milford Gravres, bateria).

Acrescenta como vê este livro, “um guia de como ouvir e entender este género musical tão complexo como a própria ideia da América, um movimento cultural que atravessou gerações, continentes, e que foi o protótipo para o rock & rol e o hip-hop”. Kalaf realça o carácter eminentemente político – no sentido lato do termo – que a visão transversal destes textos acarreta, citando Jones: “Já o músico negro, ele pega no seu instrumento e começa a tocar sons em que nunca ante havia pensado. Improvisa, cria, vem-lhe de dentro. É a sua alma, é a tal música soul… Logo, ele também consegue fazer o mesmo se lhe derem independência intelectual… Pode inventar uma sociedade, um sistema social, um sistema económico, um sistema político que seja diferente de tudo o que existe neste planeta. Vai improvisar, fazer nascê-lo de dentro de si. E é isto que todos queremos”.

A complementar tudo isto, é mais que justo referir as ilustrações de Francisco Vidal, sóbrias e estilizadas, adequam-se perfeitamente criando momentos de respiração, integrando-se na leitura de forma competente e personalizada. 

Em suma: um livro importante pela informação que nos traz sobre a fase inicial de um dos momentos em que o Jazz assumiu uma maior rotura, regressando, em certa medida, a uma raiz anterior, corporizando na música emergente toda a necessidade de consciência social, o que se viria a repetir em outras épocas. Mas também, um livro importante para descobrirmos um teórico e crítico musical atento e visionário, que teve a oportunidade de acompanhar alguns dos maiores nomes do Jazz no momento da sua ascensão inicial. E fixar esse momento. 

Música Negra
Leroi Jones (Amiri Baraka; trad. de João Berhan; ilustr. de Francisco Vidal). 
Orfeu Negro
296 págs

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