A geografia da modernidade traçada em nove dias consecutivos. É o Jazz em Agosto 2022, na Fundação Calouste Gulbenkian, com propostas que nos chegam de Chicago, Londres ou Nova Iorque. Ou Lisboa.
João Morales
Está repleto de novidades, o Jazz em Agosto 2022. Vários são os nomes que prometem surpreender e trazer até nós o que de mais determinante se faz no jazz e pelo jazz. Sem interrupções, a ofensiva começa na noite de 30 de Julho, um Sábado, e prossegue durante toda a semana até dia 7 de Agosto, o Domingo da semana seguinte, com o anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian a receber novamente a maioria destes momentos. As escolhas são, como vem sendo hábito, de Rui Neves.
A noite inicial estará a cargo dos Irreversible Entanglements, colectivo criado em 2015, no âmbito das manifestações contra a violência policial nos EUA. São um dos emblemas da editora International Anthem, chancela em destaque na edição deste ano do festival.
A poesia de Moor Mother, que também oferece a sua voz, surgirá acompanhada por Keir Neuringer (saxofone alto, sintetizador e percussão), Aquiles Navarro (trompete e sintetizador), Luke Stewart (contrabaixo e sintetizador) e Tcheser Holmes (na bateria e percussão). No dia seguinte, 18h 30m, desta vez no Auditório 2, duas mulheres, a já referida Moor Mother (que, fora do palcos, assina Camae Ayewa), na voz, acompanhada pela flautista Nicollle Mitchell, com a electrónica a cargo de ambas: E às 21h 30m é a vez de Rob Mazurek, com a sua Exploding Star Orchestra (que em 2009 já nos visitou, então com Bill Dixon), um aglomerado sonoro baseado em Chicago, com ramificações pelo pós-Rock e pela experimentação que marcou gerações de músicos nessa cidade (ou não fosse ela a geografia que viu nascer a mítica AACM – Association for The Advancement of Creative Musicians).
Mazurek é secundado por uma respeitável comitiva, constituída por Damon Locks (autor dos textos, responsável pela voz e electrónica), Nicole Mitchell (em diferente flautas), Macie Stewart (no violino), Tomeka Reid (no violoncelo), Pasquale Mirra (vibrafone), Julien Desprez (guitarra Eléctrica, músico que nos visitou em 2017 com a impactante Coax Orchestra), Jaimie Branch (trompete), Angelica Sanchez (no piano e nos teclados), Ingebrigt Håker Flaten (em contrabaixo), Chad Taylor e Mikel Patrick Avery (ambos responsáveis pelas baterias e percussões), e ainda, John Herndon (anunciado como manipulador de uma máquina de ritmos). A ter em conta.
O trompete da referida Jaimie Branch e a bateria de Jason Nazary, acondicionados em manipulações electrónicas mútuas, inauguram o mês de Agosto, pelas 18h 30m, de regresso ao Auditório 2. A noite estará a cargo de Damon Locks Black Monument Ensemble, peculiar agrupamento que conta com a clarinetista Angel Bat Dawid, Dana Hall (bateria), Arif Smith (na percussão) e quatro cantores – Erica Nwachukwu, Monique Golding, Tramaine Parker e Phillip Armstrong. Tudo sob o comando de Damon Locks, que se ocupa dos samples e da eletrónica.
Dia 2 de Agosto, Terça-feira, um guitarrista nascido no Butão cuja música foi fortemente delineada pela descoberta das técnicas e sonoridades de Dereck Bailey, Tashi Dorji, junta-se ao singular quarteto Turquoise Dream, composto pelo carismático violinista Carlos “Zíngaro” Marta Warelis (no piano), Helena Espvall (no violoncelo) e Marcelo dos Reis (em guitarra acústica). Uma conjugação suficientemente original (e bem creditada) para desencadear a curiosidade.
Na Quarta-feira, a noite é dividida entre duas propostas. Primeiro, o Voltaic Trio (formação constituída por Luís Guerreiro, em trompete e electrónica; Jorge Nuno, na guitarra eléctrica, e João Valinho, que ocupa a bateria). Em seguida, o quarteto Ahmed, onde se encontram o histórico Pat Thomas (piano), Seymour Wright (saxofone alto), Joel Grip (baixo eléctrico) e Antonin Gerbal (na bateria), quarteto londrino que recupera a obra de Ahmed Abdul-Malik.
A noite de Quinta-feira, dia 4 de Agosto, acentua a dialéctica de formatos explorados. Ava Mendoza (ostentando colaborações com nomes como John Zorn, Matana Roberts ou Hamid Drake) e a sua guitarra elétrica ocupam o palco a solo, para, posteriormente, darem o lugar ao João Lencastre’s Communion, com alguns dos nomes mais importantes do novo jazz português. O baterista conta com Albert Cirera (nos saxofones tenor e soprano), Ricardo Toscano (no saxofone alto), o piano de Benny Lackner, duas guitarras eléctricas (André Fernandes e Pedro Branco), um baixo, igualmente eléctrico, dedilhado por João Hasselberg e um contrabaixo (curiosa dualidade, esta), a cargo de Nelson Cascais.
A noite de dia 5 arranca com um interessante e sugestivo dueto – Pedro Carneiro, na marimba e Rodrigo Pinheiro, no piano – alimentando expectativas, perante a conjugação de um ecléctico valor da música erudita e um dos mais celebrados portugueses da moderna improvisação, membro do Red Trio, entre outras prestações. E a proposta que se segue, não é menos curiosa. Sob a liderança do trompetista norte-americano Nate Wooley, Seven Storey Mountain é um colectivo que agrupa Samara Lubelski e C. Spencer Yeh (violino), três bateristas (o surpreendente Chris Corsano, Teun Verbruggen e Ryan Sawyer), as guitarras de Susan Alcorn, Julien Desprez e a já referida Ava Mendoza, com os teclados de Håvard Wiik e Rodrigo Pinheiro e a voz de Megan Schubert. Subindo ainda mais a fasquia, junta-se o Coro da Gulbenkian. A coisa promete…
O segundo fim-de-semana começa em dueto, mais uma vez no Auditório 2. A guitarra eléctrica de Bill Orcutt e a bateria de Chris Corsano irão dialogar e surpreender-nos, como o fizeram no disco Made Out of Sound, registo lançado em 2021. Da introspecção à rtebeldia, muito podemos esperar. À noite, já ao ar livre, se o formato assenta num modelo clássico (piano, baixo e bateria), os elementos do Borderlans Trio podem ser acusados de tudo, menos disso mesmo: classicismo. A fantástica Kris Davis, que tem trabalhado com pessoas como John Zorn, Craig Taborn, Michael Formanek, Tony Malaby, Ingrid Laubrock, ou Mary Halvorson, acompanhada por Stephan Crump e Eric McPherson, auguram um serão inventivo e apelativo.
Tudo termina no dia 7 de Agosto, Domingo. Pelas 18h 30m, à semelhança dos restantes concertos de final da tarde, no Auditório 2, a função cumpre-se, mais uma vez, em dueto. Sara Schoenbeck é um dos novos valores do fagote contemporâneo, integrando a Tri-Centric Orchestra, projecto do profícuo Anthony Braxton, mas também com prestações no âmbito do hip-hop, rock, música eletrónica ou até mesmo incursões por abordagens contemporâneas da música clássica indiana. A seu lado estará o pianista Matt Mitchell, cujas influências detectadas por alguns críticos que já escreveram sobre o seu trabalho identificam nomes tão distintos como Keith Jarrett, Herbie Hancock, Bill Evans, Bud Powell, Cecil Taylor ou Don Pullen.
O encerramento desta maratona faz-se com um nome que dispensa apresentações, um autêntico símbolo da modernidade de Nova Iorque – e de como ela se estendeu pelo mundo. John Zorn está de regresso, para nos deliciar com o seu novo agrupamento, New Masada Quartet, onde o saxofonista se faz acompanhar por Julian Lage na guitarra eléctrica, Jorge Roeder no contrabaixo e o baterista Kenny Wollesen, um dos seus cúmplices habituais de há muito.
Em suma, à boa maneira de uma música que se quer inventiva e interventiva, esta será uma semana variada e bem frequentada, com alguns testemunhos das mais recentes apropriações do Jazz e seus derivados. Uma semana de nove dias e sem interrupções.