Jazz em Agosto 2022 – Irreversible Entanglements – Usar a memória para questionar

O quinteto que abriu o Jazz em Agosto 2022 passeou-nos por diferentes cambiantes, sem nunca se radicalizar, mas questionando o futuro. A sua própria sonoridade é quase simbólica da resposta possível: honrar a memória e os seus valores.

Texto: João Morales
Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo

Um único tema. Calma, nada de mal-entendidos. O concerto de inauguração da 38ª edição do Jazz em Agosto, Sábado, 30 de Julho, foi composto por uma extensa suíte com cerca de hora e meia, tocada ininterruptamente, vagueando pelos diferentes cambiantes que compõem o universo musical dos Irreversible Entanglements. O anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) encheu para os receber.

O colectivo escolhido (que se estreou na edição em 2017 e conta já com cinco discos, dois deles ao vivo), à semelhança de outros projectos que já passaram por este palco, sintetiza bem a intenção de uma boa parte do Jazz que se pratica hoje – fazer convergir as influências basilares desta expressão musical com a modernidade que a tecnologia nos coloca ao dispor, tendo bem presente a dimensão ideológica que atravessa uma música que nasceu com o séc. XX e acompanhou todas as suas convulsões.

Com o Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão ainda em obras, a entrada fez-se pelo edifício principal da FCG, o que não é de somenos, já que implica chegar ao anfiteatro cruzando os jardins, numa noite de Verão pleno. O ambiente começa a formar-se nessa pequena peregrinação e a encenação faz-se a si mesma.

Moor Mother (nome usado em palco por Camae Ayewa) conduz  o espectáculo, debitando a sua poesia, em tom de invectiva, manifesto articulado de espiritualidade e reivindicação (“I wanna survive!”), num registo que não renega a herança de nomes como Abbey Lincoln, Jayne Cortez ou até June Tyson, a mítica voz que acompanhou o não menos carismático Sun Ra, cuja influência também não podia estar arredada de uma estrutura desta natureza (por isso Mother proclamava “we travel the spaceways,” a dada altura).

Num registo que manteve lugar para a exploração mais próxima do free, assegurando margem de manobra para momentos mais devedores de um pós-bop menos radical, algum dub nos momentos finais, ou até de diversas estruturas rítmicas evocadores de rhythm and blues, a maior surpresa – e extremamente agradável – terá sido descortinar a presença do psicadelismo ou de algum Rock Progressivo dos anos 70, muito por culpa da dinâmica imposta pelos dois sintetizadores.

Falemos então deles. Os dois instrumentos de teclas foram assegurados pelos solistas do sopro. Keir Neuringer (extraordinário saxofonista alto, por vezes, num registo a fazer lembrar Steve Potts ou Roscoe Mitchell), curiosamente, também ele ligado à prática de spoken word, com o projecto Ensemble Klang; Aquiles Navarro, trompetista de ascendência panamiana, responsável pela River Down Records, chancela que pretende divulgar a música mais criativa do Panamá.

Ora um, ora outro, ora ambos, as texturas e explorações levadas a cabo por estes dois foram fundamentais para a definição do som colectivo ao longo de toda a noite. “The only diference is what you bring to the table”, dizia Mother.

Toda a arquitectura ia sendo sustentada por uma sólida e competente secção rítmica, assegurada pelo contrabaixista Luke Stewart (músico que cresceu em Ocean Springs, no Mississipi, e que já trabalhou com Archie Shepp, Ken Vandermark ou Wadada leo Smith) e o baterista Tcheser Holmes (homem de Brooklyn, cujo duo com Aquiles Navarro actuou em 2014 num encontro, Musicians Against Police Brutality imediatamente a seguir ao trio de Camae Ayewa (Moor Mother). A empatia deu-se espontaneamente e, pouco depois, surgiam os Irreversible Entanglements, cuja prestação denota de forma muito visível esse entrosamento entre os cinco e a coesão sonora que troca uma consistência semântica por momentos de solos mais exuberantes ou distinção individual mais evidente.

Outra das marcas da noite, foi a recorrente utilização da percussão, de um modo a que poderíamos chamar “corporativo” – ou seja, quase toda a gente colaborou, trazendo à memória uma histórica frase do já citado Sun Ra, colocada na contracapa do álbum Space is The Place: «As all marines are riflemenall members of the Arkestra are percussionists».

Mother, recorrendo a dois microfones, várias vezes em simultâneo, aos efeitos de eco e a toda uma ambiência planante dedicadamente mantida – sempre que assim entendia não se coibia de assinalar, discretamente, à mesa de som, a necessidade de aumentar ou diminuir a sua presença –  ia desfilando a sua evocação de figuras tutelares (como Max Roach, Jelly Roll Morton, Miles [davis) ou Woody Shaw, cujo conhecimento agradeceu a Navarro, quando apresentou os músicos) e apelando a uma fraternidade evidente (“you must believe in it”).

Se o convite ao público para que se levantasse, num momento mais dançável da prestação, não acolheu adesão, minutos depois, uma mola colectiva ejectou-nos em simultâneo aplaudindo efusivamente a prestação dos cinco. “You talk about freedom, but what do you know about freedom love?”, questionava Moor Mother. Andamos todos em demanda, arrisco-me a responder.

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