Jazz em Agosto 2022 – Sara Schoenbeck & Matt Mitchell/ New Masada Quartet – Apoteose!

Durante nove dia consecutivos a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) acolheu o Jazz em Agosto. O último dia foi palco para duas formações bem distintas, a joalharia sonora de Sara Schoenbeck e Matt Mitchell, ao final da tarde, encerrando com uma chave de ouro bem reluzente, New Masada Quartet, expondo a assinatura inconfundível de John Zorn.

Texto: João Morales
Fotografias: Vera Marmelo

O som produzido pela parceria Sara Schoenbeck & Matt Mitchell, uma das várias que integram o álbum homónimo lançado por Schoenbeck em 2021, assenta numa suspensão constante, existindo entre diferentes registos, sem nunca sem se alargar em nenhum deles.

A dimensão feérica, quase bruxuleante, foi uma das vertentes que rapidamente ajudaram a situar os caminhos traçados pelos dois músicos, articulando os seus discursos em prol de uma linguagem devedora da herança Clássica, Contemporânea, mas também de toda a gramática que a Improvisação desenvolvida ao longo das últimas décadas na música ocidental foi consolidando e fazendo crescer. 

As cascatas de piano cruzadas com os rugidos ou, em outras ocasiões, os trinados libertados pelo instrumento de sopro, constituíram um cenário adequado para que o emaranhado de ambos os discursos erguesse em sintonia uma panóplia hipnotizante, qual floresta mágica e acolhedora onde o trabalho convergente ganhou espessura ao longo do encontro.

Sara Schoenbeck toca fagote, Matt Mitchell, piano. A sonoridade do instrumento de sopro, densa e cavada, assenta adequadamente num registo devedor das sonoridades de câmara, embora em alguns momentos da sua prestação Schoenbeck arrisque algumas abordagens mais próximas da improvisação, denunciando até momentos do seu passado/ percurso musical (diversificado, com Anthony Braxton, Roscoe Mitchell ou Wayne Horvitz, mas igualmente em contextos de hip-hop, música eletrónica ou clássica indiana). A revista Wire refere-se a ela como um membro do “pequeno clube dos pioneiros do fagote”, congregação restrita onde poderíamos encontrar Karen Borca ou, claro, Lindsay Cooper).

O passado de Mitchell também está bem frequentado, por lá encontramos referência a nomes como Tim Berne, Ches Smith, Dave Douglas, John Hollenbeck, Steve Coleman, Marc Ducret ou Mario Pavone. A conjugação dos dois músicos resultou numa linguagem acessível e franca, ideal para um final de tarde de Agosto, numa sala como o Auditório 2, com o interessante cenário a remeter para a imagem do jardim exterior.

À noite, as honras de encerramento do festival, já no Anfiteatro ao Ar Livre, estavam reservadas para um dos grandes nomes da actualidade, visita regular nos anos mais recentes, o grande John Zorn, com um dos seus novos projectos (sim, porque o homem é eléctrico e gera formações como quem respira a subir uma montanha), o New Masada Quartet.

Rapidamente ficou claro que os caminhos do concerto seriam traçados segundo um mapa imaginado pelo saxofonista, simultaneamente responsável pelas indicações que ia fornecendo em tempo real aos seus músicos, na linha da improvisação conduzida que, de forma cada vez mais aprofundada, tem vindo a desenvolver. Não raras vezes o instrumento era segurado apenas com uma mão, servindo a direita para ordenar tempos, entradas, alternâncias. Tudo seguido à risca.

A rapidez com que induz um caminho num tema para, logo em seguida, aplicar-lhe uma inflexão que tanto pode passar pela linha melódica como por uma rigorosa gestão dos “holofotes”, que é como quem diz, da decisão de quem sola, e em articulação com quem. As alternâncias – súbitas – entre os dois elementos da secção rítmica, proporcionaram alguns dos mais extraordinários momentos, perante o comprovado virtuosismo dos músicos em palco.

Apesar da semelhança do nome, a diferença entre esta e a formação anterior do quarteto é total. Se o baterista (Kenny Wollesen) é um velho conhecido, cúmplice presente em diversas das arquiteturas sonoras que o fundador da editora Tzadik foi imaginando, os restantes dois nomes podem necessitar de alguma apresentação.

O contrabaixista peruano Jorge Roeder (n. 1980), com formação clássica no seu currículo, mas também a participação na banda de Heavy Metal Ni Voz ni Voto, trabalhou com nomes como Gary Burton ou Nels Cline, antes de integrar o núcleo de Zorn. Quanto ao guitarrista, o californiano Julian Lage, cuja presença foi assegurada com grande destaque (com Zorn a recorrer a ele diversas vezes para criar uma dinâmica articulada consigo mesmo) gravou com Nels Cline, Kris Davis ou… Yoko Ono! Nasceu em 1987 e foi considerado uma criança-prodígio. Em 1996 deu origem ao documentário “Jules at Eight” e em 2000 actuou nos Grammy, cerimónia a que voltaria várias vezes, como nomeado.

Desde 2017 que grava com John Zorn. Em palco, ambos criaram uma dinâmica muito própria, Zorn parecia querer mostrá-lo ao público e deu-lhe várias oportunidades para brilhar. E ele assim fez.

As rápidas mudanças de ritmo, as coexistências entre elementos aparentemente clássicos e inusitados (como o momento em que a secção rítmica se abalançava a algo semelhante a um samba enquanto o saxofone de John Zorn e a guitarra de Julian Lage se espraiavam num duelo de agudos), a capacidade de transformar uma balada clássica numa ambiência experimentalista, regressando rapidamente ao ponto de partida (ou de integrar elementos de um blues, juntamente com a mais histriónica improvisação, como no encore) tudo denunciava a assinatura do líder do grupo: John Zorn.

A inclusão de alguns elementos evocativos das ambiências Klezmer, também marcou, naturalmente, presença. Afinal, Masada é a designação de um planalto imponente, situado em Israel, no extremo oriental do Deserto da Judeia. É uma fortaleza natural, defendida por penhascos íngremes.

Ao longo do concerto foi visível a boa-disposição e auto-confiança de John Zorn (a sua expressão e gargalhadas quando se deu conta de um dos aviões que sobrevoam o anfiteatro da FCG foi assaz clarificadora). Plena de mestria, uma noite divertida, como divertida pode ser uma música complexa, rigorosa, exigente, empenhada e revolucionária. That’s Jazz!

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

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