[Opinião] Princípio de Karenina, de Afonso Cruz

Princípio de Karenina

Princípio de Karenina
Afonso Cruz

Companhia das Letras

O amor corrige o mundo. Mas será a presença do amor suficiente para corrigir o mundo, ou será necessário uma certa intensidade, uma certa proximidade com o desastre e o desespero, para agir? Princípio de Karenina é o primeiro livro da série Geografias de Afonso Cruz, já publicado em 2018. Há uma série de anos que não escrevo sobre os livros do Afonso. Não que não o leia, porque tenho lido todos, mas porque receio sempre cair nos lugares comuns, de me repetir, de não ter nada de novo para dizer. Li o Princípio de Karenina, pela primeira vez, pouco depois de ter sido publicado. Esta semana, decidi relê-lo.

Acho que nunca me vou cansar de me sentir fascinada com o efeito de reler um livro, constatando que a nossa posição no mundo, o nosso estado de espírito quando lemos um livro, tem um efeito tremendo na forma como o lemos, como o interpretamos. E talvez por Princípio de Karenina evocar precisamente esse sentido de viagem, ao mesmo tempo de imobilização, dei conta de vários efeitos muito subtis que não tinha sentido na primeira leitura.

E o primeiro efeito, e talvez o mais surpreendente para mim, foi a empatia ampliada pelo protagonista. E, talvez, se já leram o livro, vocês vão pensar: como é que é possível? Por tantas razões. Comecemos pelos deimos e phobos, unidades do medo. Apesar do nosso protagonista ter sofrido um condicionamento brutal por parte do pai, estes deimos e phobos não deixam de existir para quem sofre de uma certa ansiedade espacial. A forma como se mede o desconforto e o risco ou a confiança numa determinada acção poderia certamente usar estas medidas.

Enquanto este pai escreve esta carta de amor à sua filha (porque não deixa de ser uma carta de amor), vivemos com ele uma viagem de aproximações e afastamentos, um medo irracional do desconhecido à distância da porta de entrada da casa, que só começa a ser desconstruído quando um agente estrangeiro entra precisamente por aquela mesma porta. Se até então as janelas deviam estar sempre fechadas, há uma janela que se abre e que se torna impossível de fechar. E se por um lado esta janela representa esperança, a mesma não é capaz, com toda a sua luz, de afastar o medo da mudança e o comodismo.

Até ao dia em que contratámos a tua mãe, eu vivia uma rotina amável, a meia-luz, sem sobressaltos, cego às dores alheias. A partir desse instante, a solidez da minha rotina começou a abrir uma brecha por onde entrava luz. A presença dela haveria de perturbar o tédio nosso de cada dia, abrindo uma janela por onde quer que passasse.

Princípio de Karenina é uma ode à fragilidade e à força humana. Dois pesos que se tentam equilibrar de forma constante, mas muitas vezes de forma muito precária. Quem é que termina este livro e não fica a pensar também no Dois Metros e na cegueira (in)consciente? Quantos Dois Metros temos nós nas nossas vidas? Quem é que não fica a pensar na forma cega como às vezes se fica obcecado com um amor para depois, depois de tantos actos potencialmente irreflectidos e irracionais, se aperceber que afinal era algo oco? Também a finitude, a morte, tem um papel importante tanto na nossa coragem como na nossa cobardia.

Mas aliviemos a seriedade deste texto, que já vai longo, e passemos à leveza dos pormenores belíssimos da escrita de Afonso Cruz. É aqui que provavelmente me vou repetir, mas depois de tanto tempo sem o fazer, tenho a certeza que vocês me perdoam. Como já nos foi habituando, também Princípio de Karenina é rico não só em referências literárias (penso que o título fala por si mesmo) como também é encantador na forma como mistura e reinventa conceitos científicos e filosóficos.

Dado que esta obra resulta também de uma viagem do autor ao Vietname e ao Camboja, não será de estranhar a referência à Cochinchina e a forma como o autor entrelaça a forma como usamos a expressão à sua referência espacial. A certa altura do livro, o protagonista tem uma guia turística, a Sun — thank you so much — e eu só me ria a imaginar o próprio autor a interagir com esta pessoa e a trocar aqueles diálogos. E há sempre algo de especial quando sentimos uma experiência real no meio de um romance.

Quando ouvi a palavra Cochinchina, sem me aperceber de que era o amor que eu temia e não o monstro da minha infância, levantei-me e disse gravemente, tal como teria feito o meu pai num a situação idêntica se fosse ameaçado pelo estrangeiro ou pelo amor: fechem as janelas.

No geral, Princípio de Karenina irá tocar cada um de nós nos nossos nervos mais sensíveis. Apesar da minha empatia acrescida pelo protagonista, não posso dizer que seja um personagem fácil de gostar e se talvez nem seja suposto. No entanto, a sua evolução ao longo da estória culmina numa espécie de redenção que atenua as infinitas formas de imperfeição que é a vida humana.

Como esta dissertação já vai mais que longa, deixo uma última referência ao papel da deformidade, da música, de todas as imperfeições que nos acompanham, que nos salvam e nos condenam e como ainda assim está sempre do nosso lado a dúvida sobre se a felicidade é um caminho ou um destino.

É certo que: Existem infinitos lugares para estar errado, apenas um para estar certo, dois e dois tem um resultado correcto e infinitos resultados errados. É assim que funciona a entropia e os copos partidos/inteiros. Existem inúmeras configurações para os cacos de vidros partidos, mas apenas uma para ter o copo original. Todos os quadrados perfeitos, se nos abstrairmos das suas dimensões, são iguais. São as mazelas, as imperfeições, que fazem ‘quadrados’ diferentes, imperfeitos.
Porém, a felicidade não obedece a essas regras. Estar no lugar errado pode ser fonte de felicidade. Matar-me pode ser fonte de felicidade. Não há condições certas para ser feliz. Existem condições propícias para se estar contente, ou momentaneamente feliz, mas não para ser feliz. Todas as disposições de cacos de vidro podem ser modelos de felicidade. Disposições imperfeitas, cada uma à sua maneira, mas felizes, cada uma à sua maneira.

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