Jazz em Agosto 2024 – As mãos dele são barcos [The Locals]
A noite de dia 9 de Agosto foi dedicada à música de Anthony Braxton, reinventada pelo quinteto The Locals, com Pat Thomas e Alex Ward a liderarem uma noite surpreendente. Uma roupagem servida por batida Funk, acabava por desvendar a complexidade do compositor de Chicago. Mas aí, já estávamos todos rendidos…
Texto: João Morales
Fotos: Vera Marmelo/ Gulbenkian Música
Como tinha anunciado, a presença do Blog Bran Morrighan no Jazz em Agosto 2024 foi um bocadinho “de fugida”, mas concertos como este fazem justiça à qualidade habitual do certame que, recorde-se em abono do merecido elogio, completa este ano quatro décadas de um metódico, insistente e coerente percurso, desde a sua edição inicial, composta apenas por projectos nacionais, desbravando a partir daí a imensa paisagem que brota das fusões e derivações a que um género musical desta natureza sempre esteve assumidamente sujeito. Uma palavra de apreço a todos os programadores que desenharam estes 40 anos e, naturalmente, a casa que acolhe o encontro, cujos nomes já se confundem pela sua natural predisposição para uma atenção constante à actualidade à memória.
Passemos então ao concerto da noite e 9 de Agosto. Mal começa o primeiro tema, entendemos que a música em questão vive de dois factores: por um lado, a riqueza das composições de Anthony Braxton, o padroeiro cujas composições estão na origem e na energia que move este quinteto, por outro, a sombra de um certo Funk, constante e assaz flexível, que transporta estes temas para um novo universo, proporcionado terreno fértil para a versatilidades dos músicos agrupados, The Locals.
O projecto (fixado em CD em 2021, “Plays the Music of Anthony Braxton”, embora se trate de uma gravação ao vivo de 2006) surge com o nome de Pat Thomas à cabeça, histórico pianista fortemente influenciado pelo jazz mais livre (nasceu em 1960), que já se cruzou com músicos como Lol Coxhill, Steve Beresford, Thurston Moore, Phil Minton ou Eugene Chadbourne. Já passou mais que uma vez pelo Jazz em Agosto, sendo as presenças mais recentes com o quarteto Ahmed, em 2022, e integrado no Trance Map +, de Evan Parker, no ano seguinte.
Thomas é de uma agilidade assinalável, as suas mãos percorrem o teclado com mestria, esquerda e direita trocam facilmente de posicionamento, vagueiam ou matraqueiam o teclado com o primor de quem sabe bem em que águas navega. As suas mãos são barcos, conhecedores das marés em que se movem, ditando mesmo a cadência das vagas, quando necessário. Nota-se bem uma sabedoria antiga, no discurso musical, na escolha dos momentos para abrir “hostilidades”, acolher “consensos”, promover conjugações.
Contudo, há um outro elemento fundamental para o sucesso desta ideia feita grupo que, não só sublinha, mais uma vez, a riqueza da escrita de um dos fundadores da mítica Association For the Advancement os Creative Musicians (AACM), na década de 60 do séc XX, como transporta essa mesma música para uma dimensão distinta, marcada por uma secção rítmica rígida (mas atenta e competente), trazendo consigo heranças de outras famílias sonoras, como o Harmolodics ou o M-base – sendo, necessariamente, uma coisa diferente.
E esse elemento é o magnífico clarinetista Alex Ward (n. 1974). Com 12 anos de idade conheceu Derek Bailey, uma das sumidades da nova música improvisada, no ano seguinte tocou com ele (na lendária formação variável Company) e, em 1991, grava o seu primeiro disco, com o percussionista Steve Noble, justamente na Incus, a chancela de Bailey. Descubram-no em The Convergence Quartet; Son/ Dance (Clean Feed; 2010)
Ward solou com toda a elegância ao longo da noite, integrando o seu discurso em momentos imbuídos de um certo Free-Funk, ou Funk-Rock, em passagens herdeiras de um reggae bastante artesanal (como no último tema, antes do encore), em trocas de galhardetes com o piano de Thomas ou a secção rítmica (em especial a guitarra de Evan Thomas), em sequências de exploração colectiva que traziam de novo à tona a essência experimentalista que move estes homens (como o encore, que começou com uma balada, para derivar rapidamente em cascata de várias frentes), ou deambulando em contramão com a simplicidade aparente que o invólucro sabiamente potencia.
O quinteto tocou cinco temas, mais um encore, tendo o baixista Dominic Lash (n. 1980, com um percurso que engloba prestações com John Butcher, Evan Parker, Joe Morris ou o histórico Tony Conrad, nome maior do minimalismo) trocado o eléctrico pelo contrabaixo em duas das faixas, curiosamente, mostrando-se mais flexível nesse registo. A formação foi completada com o baterista Darren Hasson-Davis, figura com um percurso essencialmente académico, no ensino de bateria.
No final, perante uma audiência alargada, cinco homens demonstraram como a música permite várias abordagens a uma mesma composição, como o essencial se prende com a alegria da comunhão e como nunca estão esgotadas as vias de acesso a um estilo ou um músico. Pelo menos, para quem conhece bem as águas em que navega.