Jazz em Agosto 2025: Da memória primordial (Heart Trio)
Um anfiteatro completamente esgotado assistiu à magia do Heart Trio. A abertura do Jazz em Agosto voltou a demonstrar a ampla abrangência das propostas do festival e, numa edição onde se ouviria bastante electrónica, não podia começar de forma mais acústica.
Texto: João Morales
Fotos: Petra Cvelbar – Gulbenkian Música
A abertura da 41ª edição do Jazz em Agosto, na Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), esteve a cargo de um trio intenso, composto por figuras de proa da improvisação das décadas mais recentes, agregadas sob a designação Heart Trio, cuja música ficou fixada em CD homónimo, publicado em 2024. Três homens em palco. Todos americanos. À direita, um baterista, ao centro um instrumento de corda de caixa esférica (mais à frente voltaremos a ele). À esquerda, sobre as pernas do músico, um estranho xilofone em forma de trapézio. que dá o sinal de partida e o acompanhará nos primeiros tempos do concerto.
Não é de swing, de free jazz ou de algum outro conceito mais ou menos aparentado com a família do jazz que se trata. Conheceremos um folclore sem fronteiras nem época, gerado pela memória, accionado pela improvisação dinâmica, motivado pela osmose que serve de fio condutor aos longos temas apresentados. O ritmo, é uma das traves-mestras deste edifício, mas não ostentado em demasia, antes insinuando o carácter percussivo imprimido aos instrumentos, cabendo a cada um dos três, partes equitativas do resultado final.
Regressemos ao trio, agora da esquerda para direita. Cooper-Moore (n. 1946, baptizado como Gene Y. Ashton) não é apenas o talentoso pianista que durante anos acompanhou David S. Ware, mas também um engenhoso construtor de instrumentos, como a espécie de violino suportado na boca, que trouxe consigo, ou a harpa horizontal.
William Parker (n. 1952) não carrega o contrabaixo que o celebrizou (primeiro com Cecil Taylor, depois liderando a sua Little Huey Creative Music Orchestra, ou aglutinando músicas negras, como no genial projecto The Inside Songs of Curtis Mayfield). Divide-se por diferentes flautas, pelo duduk (o chamado oboé arménio) e cordofones, como o donso ngoni (instrumento cujo corpo central é feito a partir de uma cabaça, coberta por pele de cabra, de onde sai o braço, o tal aparelhómetro com que abriu o concerto).
E Hamid Drake (n. 1955), que toca há muito com ambos, em diferentes contextos, reforçando a cumplicidade sentida ao longo de toda a apresentação do colectivo. Os três conhecem-se bem, até porque integram o coletivo In Order to Survive (que já conheceu diversas formações).
Apesar de nascidos nos EUA, é evidente a herança, a tradição e a diáspora que incorporam, na senda de vários idiomas sonoros, evocando distintas geografias, articulando África, Ásia ou o Médio-Oriente. Música que nascerá da memória, mas uma memória primordial e sensitiva.
Coesão e hipnotismo serão duas das palavras que podem ajudar a definir o ambiente gerado, oferecendo um clima de assumida espiritualidade e devoção, articulando ancestralidade e improvisação. Se, ao início do segundo tema, somos transportados para sons que evocam o blues desnudo e primordial da primeira metade do séc. XX, momentos houve em que a Arábia ou a as profundezas da selva africana também seriam inspiração a ter em conta. Tudo isto circundado pelos sons naturais do jardim da FCG, convivência apenas entrecortada – como habitualmente – pelos aviões que sobrevoam esta área.
Ao longo de hora e meia de música (apenas com duas paragens) passaram pelo palco do Anfiteatro ao Ar Livre um conjunto de instrumentos pouco óbvios, reforçando o carácter etnográfico da sonoridade que serve de base à improvisação dos três músicos, mas também o carisma da sua prestação.
A parte final do concerto foi um dos momentos altos, na sua convergência, em ascese e abrangência. Cooper-Moore pontuando com duas baquetas (uma na outra), primeiro, depois com o tal parente de violino que utiliza também a boca, (mais percutido que raspado) Parker, exímio no sopro; Drake, entoando uma melopeia que acompanha com a sua frame drum (parente do nosso adufe). A dimensão telúrica, a memória colectiva desencadeada, vão crescendo e convergindo, ganhando velocidade e corpo. E nós com eles.
«Heart to Resist. Heart to Sing! Heart to be yourself! Heart to share and love one another. That what this is about», proclamou Wiliam Parker antes de apresentar os seus parceiros. Só nos restava levantarmo-nos e aplaudir veementemente.