Jazz em Agosto 2024 – Um corpo colectivo [dieb13 Beatnik Manifesto]
Se a beat generation assentou na glorificação do individuo, este Beatanik Manifesto inverte os pressupostos e faz do som colectivo, da orquestração, a sua mais-valia.
Texto: João Morales
Fotos: Vera Marmelo/ Gulbenkian Música
Quando pensamos em Beatnik, a imagem que nos ocorre é de um indivíduo – viajante, bardo, aventureiro – mas um indivíduo. O projecto Beatnik Manifesto, concebido e coordenado por dieb13, assenta precisamente num pressuposto invertido, ou seja, ao longo do espectáculo o que sobressai é a dinâmica colectiva, a sonoridade obtida pela conjugação do extenso leque de músicos e a dimensão quase maquinal que se obtém com esse efeito. O simples facto de não ter sido dirigida ao público uma única palavra, entre o início e o final do concerto, bem como a ausência de qualquer apresentação dos músicos, não parece ser casual, antes acentua essa mesma construção.
Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, final da tarde de dia 9 de Agosto. O palco encontra-se repleto, são 14 músicos, incluindo dieb13, responsável pela composição desta peça (distribuída por vários movimentos), montagem das imagens de vídeo a que vamos assistindo e manipulação de um gira-discos. Este austríaco (cujo nome é Dieter Kovačič) tem trabalhado em colaboração com diversos nomes da vanguarda do Jazz, como John Butcher, Mats Gustafsson ou Günter Müller.
A orgânica desta pequena orquestra assenta na repetição de instrumentos: duas baterias, dois contrabaixos, duas guitarras eléctricas, dois clarinetes-baixo e um sax alto, dois manipuladores de electrónica. E uma dupla de vozes ao centro: Karolina Preuschl e o histórico Phil Minton (nome que se associa rapidamente a Mike Westbrook, Veryan Weston ou Roger Turner). Logo a abrir surgem palavras na tela que ajudam a contextualizar: Beatniks We Are. A voz que ouvimos é a de Minton e, sobre um crescendo dos sopros, demonstra um pouco das suas capacidades, começando pela leitura (ora suave, ora quase gritada), fazendo brotar perante os nossos olhos figuras que remetem para o universo do cartoon, sussurrando, graduando a cadência da respiração, percorrendo um manancial de efeitos torácicos que só ele conhece.
As imagens vão surgindo na tela, ora um cenário marinho e as suas vagas, ora rostos como os de Donald Trump ou Allen Ginsberg, ora animais fosforescentes. As duplas de instrumentos semelhantes dão, várias vezes, azo a diálogos mais ou menos frenéticos, como foi a dupla de guitarras eléctricas de Sandy Ewen e Finn Loxbo, ou as baterias de Erik Carlsson e Camille Émaille.
A composição que vai avançado assenta nas suas possibilidades orquestrais, sendo que o factor de improvisação está também presente de forma mais ou menos constante, embora sem que seja o de maior evidência. Ou seja, por cima da conjuntura colectiva vão discorrendo os diferentes naipes e, aí sim, há margem de manobra para confrontar o material já composto.
Há vários momentos de maior intensidade, como o despique entre os três instrumentos de palheta, a passagem em que os Karollina e Minton vocalistas assobiam com o nariz tapado, criando efeitos incríveis, a dinâmica entre declamação, quase no domínio da acalmia, e uma intervenção das vozes mais aguerrida (Minton esteve igual a si mesmo, com os trejeitos de corpo, o jogo de aproximação/ afastamento ao microfone e a sábia gestão de inspiração e expiração).
Uma pequena nota para reflectir sobre uma opção – legítima – que tem vindo a ganhar terreno em alguns locais de concertos (que a não tinham). Durante anos habituámo-nos a encontrar uma folha de sala, não apenas com informação referente aos músicos envolventes e respectiva instrumentação, mas também algumas considerações/ contextualização sobre o que vamos e ouvir. Numa lógica de sustentabilidade ambiental, várias são as instituições que abandoam a criação e difusão dessa mesma folha. Contudo, seria de reflectir sobre a pertinência da sua permanência.
A energia colectiva gerada pelas dinâmicas conduzidas por dieb13 resulta com eficácia em cada movimento, talvez falhando um pouco a noção de globalidade, a ligação entre as várias partes. Há um regular fluxo de tensão que não cede a repetições ou lugares-comuns, demonstrando uma vitalidade assinalável, explorando caminhos nem novas incursões na tantas vezes designada terceira via, ou seja, a confluência entre música composta e o espaço destinado a acolher a perspectiva individual que significa a improvisação. No fundo, como o Jazz tantas vezes tem feito ao longo da História.