Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Sat, 06 Sep 2025 12:45:15 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.2 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 [Opinião] Siddhartha, Hermann Hesse https://branmorrighan.com/2025/09/opiniao-siddhartha-hermann-hesse.html https://branmorrighan.com/2025/09/opiniao-siddhartha-hermann-hesse.html#respond Sat, 06 Sep 2025 12:45:13 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25589

Siddhartha
Hermann Hesse

Editora: Pushkin Press

Nunca vos escrevi sobre a livraria Libreria (vamos deixar isso para outro post), mas sempre que lá vou é difícil não comprar um livro novo. É um dos meus espaços seguros em Londres, com a sua própria selecção de livros que vendem, e foi lá que encontrei Siddhartha, nesta belíssima edição gráfica. Talvez devesse ter vergonha de nunca antes ter lido Hermann Hesse, mas a verdade é que esta foi a minha estreia na sua literatura. Não costumava eu defender que cada livro nos escolhe na devida altura? Pois essa teoria não mudou.

Siddhartha é um dos livros mais ancestrais e mais actuais de sempre. A dicotomia entre esse uma narrativa antiga e ainda assim ser algo tão intemporal, na verdade provocou em mim um sentimento de paz: que no fundo, tal como nos é transmitido a certa altura na leitura, todos somos feitos do mesmo e a nossa origem não é mais do que um momento no tempo, a transição de algo que um dia tomou uma forma completamente diferente. A pedra que foi animal, o animal que foi estrela, a estrela que se tornou parte de um humano.

Foi então impossível não ligar esta leitura ao caminho que percorro no yoga. Siddhartha vem como um lembrete gentil de todas as lições que vamos aprendendo ao longo do nosso percurso como yogi. O início de Siddhartha não é evidente. Quando partilhei que iria começar esta leitura, duas pessoas que me são especiais disseram-me que Siddhartha era um dos seus livros preferidos. Que volta e meia voltam à sua leitura. No entanto, o curioso é que ao início não me prendeu muito. Não considero que seja um início lento, mas o desenvolvimento da empatia e da ligação com Siddhartha tomou o seu tempo a desenvolver.

Na verdade, a minha experiência de leitura com este livro, ecoou muito do caminho que às vezes é desenvolver uma ligação com uma outra pessoa, sendo que na verdade é um caminho para nos encontrarmos a nós mesmos. Acho que uma das mensagens com que mais me identifiquei, é que conhecimento é possível transmitir, mas sabedoria não. Sabedoria só nasce da experiência, visceralmente, da tentativa e erro, de nos perdermos e termos a modéstia suficiente para o reconhecermos e procurarmos a verdade em nós mesmos.

O que tem o seu aspecto frustrante: se vemos alguém que parece perdido na sua missão (como tantas vezes Govinda achou que Siddhartha estava), não temos o impulso imediato de tentarmos ensinar, aconselhar, guiar? Vasudeva mostra-nos na verdade outra forma de o fazer. Este personagem mostra-nos o poder de ouvir e de apenas redireccionar quem amamos para que ouçam algo que vai para além da forma física.

Não vou comentar todo o trajecto de Siddhartha, deixo isso para o leitor explorar e ter a liberdade de se identificar com aquilo que lhe servir, e só reconhecer o que não lhe servir. Porém, sou da opinião que abraçar o ciclo e a mensagem completa deste livro requer um poder de auto-reflexão grande. Exige que entremos em contacto com as nossas emoções e que nos permitamos ouvir no silêncio do universo. Só assim evitamos precisar de toda uma vida de apegos e desapegos para percebermos o quão transitório tudo é, sentindo então liberação.

The river laughed. Yes, that was how it was. Everything that was not suffered to the end and finally concluded, recurred, and the same sorrows were undergone.

E é nesse reconhecimento que está a dádiva: encontrar a liberdade de não viver no passado, nem antecipar o futuro, mas simplesmente aceitar que fazemos parte do todo.

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BranMorrighan – O Virar de Mais uma Página https://branmorrighan.com/2025/08/branmorrighan-o-virar-de-mais-uma-pagina.html https://branmorrighan.com/2025/08/branmorrighan-o-virar-de-mais-uma-pagina.html#respond Mon, 25 Aug 2025 09:46:32 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25584

Há quase 17 anos, criei o BranMorrighan. Tinha começado a minha vida adulta não há muito tempo e, durante uma década, partilhei convosco algumas das montanhas-russas que fui vivendo. Partilhei leituras, música, pensamentos aleatórios, comentários, uma variedade de conteúdos que, durante uns bons anos, teve um sentido de comunidade, de carinho e de interação com leitores maioritariamente portugueses.

A certa altura, fui viver para os Estados Unidos, afastei-me mais das redes sociais, e essa relação arrefeceu. O que é perfeitamente normal. Quando voltei para Portugal, com novas responsabilidades e nova carreira, numa altura pós-Covid (que nos mudou a todos e à forma de nos relacionarmos uns com os outros), não consegui retomar a atividade no blogue como teria gostado.

A verdade é que os anos passam, as experiências que vivemos também nos mudam, e não será surpreendente dizer que a pessoa que eu era há 17 anos, há 6 anos (pré-Covid e EUA), não é a mesma pessoa que sou atualmente. Para aqueles que me seguem no IG, sabem que entretanto já não estou em Portugal, mas novamente fora – desta vez no Reino Unido, em Londres.

Já faz um ano que me mudei para as terras de Sua Majestade e, para já, não há data de nova mudança. O que não quer dizer que, na verdade, ande parada. Devido à minha nova posição académica, acabo a viajar praticamente todos os meses para vários pontos do globo para dar palestras, fazer retiros de investigação, participar em conferências, etc.

O núcleo de quem sou, na verdade, não mudou assim tanto. Ou seja, todo o entusiasmo de comunicar e partilhar opiniões é claramente evidente na forma como vivo o ambiente académico, mas o público mudou. Ainda discuto literatura e música com colegas, apenas não tenho escrito mais sobre os mesmos. Existe um Substack algures para o blogue, em que escrevi maioritariamente em inglês, mas foi sol de pouca dura.

Escrevo-vos hoje aqui também graças ao João Morales, que foi ao Jazz em Agosto e ainda viu o BranMorrighan como uma casa de partilha. E então fez-me pensar: será que devo fechar este ciclo? Fechar o BranMorrighan para sempre? A verdade é que não consigo. Talvez por ter tanto de mim aqui, tantas transformações que já teve, ambições de podcasts, edições de livros, etc., cheguei à conclusão de que, se calhar, podemos continuar neste espaço, mas transitando novamente para um formato que faça mais sentido com o meu presente.

Dito isto, apesar de o inglês não ser a minha primeira língua, é possível que, de vez em quando, venha aqui escrever tanto numa língua como noutra. Talvez possa haver um recomeço em que, em vez de apagar o quadro todo, apenas viro a página. Na vida, às vezes gostaríamos de começar do zero, mas, no fundo, a única coisa que podemos fazer é iniciar um novo capítulo, virar a página. Tudo o que vivemos para trás será sempre parte de nós, e hoje não seríamos quem somos sem essas experiências – boas ou menos boas. Retemos o bom, aprendemos com o doloroso.

E, enquanto termino este post, ouço os corvos lá fora. É verdade, onde vivo tem imensos corvos e confesso que me consola quando os ouço. Recentemente também criei o meu primeiro grupo científico: BRAN Lab – https://andreiasofiateixeira.com/branlab/. Não estamos surpreendidos, certo? Mas vou deixar essa partilha para um novo post. Este já vai longo.

No fundo, só quero agradecer a quem me continua a visitar aqui (as estatísticas mostram um fluxo bastante consistente, mesmo sem novo conteúdo). Com o novo formato de pesquisa, em que as ferramentas de inteligência artificial fazem resumos sobre tudo e mais alguma coisa, em que existe uma utilização cada vez maior do ChatGPT (deixem-me dizer-vos que tenho pensamentos muito fortes em relação a isto…), fico surpreendida que ainda haja quem leia blogues.

Se houver algum tema ou alguma coisa que vocês gostassem de ler de mim, deixem comentários. Aqui ou no IG. Um abraço, e espero que vocês estejam todos bem.

Sofia

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Jazz em Agosto 2025: Ritmo e energia para todos (Patricia Brennan Septet) https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-ritmo-e-energia-para-todos-patricia-brennan-septet.html https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-ritmo-e-energia-para-todos-patricia-brennan-septet.html#respond Mon, 25 Aug 2025 08:57:19 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25573 Jazz em Agosto 2025: Ritmo e energia para todos (Patricia Brennan Septet)

A edição deste ano do Jazz em Agosto encerrou com grande animação; o septeto de Patricia Brennan com laivos orquestrais e a herança mexicana da sua mentora tocou e encantou completamente, numa magnífica noite de Verão.

Texto: João Morales

Fotos: Petra Cvelbar – Gulbenkian Música

Logo no arranque o anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian foi completamente contaminado. Um arranque pujante, um toque latino subjacente, uma dimensão orquestral que daria mostras, várias vezes ao longo da noite, de estar perfeitamente trabalhada. O septeto da vibrafonista Patricia Brennan (que passou pelo festival em 2023, no projecto Amaryllis, de Mary Halvorson) foi uma apoteose acertada para o festival. E não deixa de ser assinalável, num certame que se pauta pela apresentação regular de propostas bem radicais e disruptivas, o encerramento seja feito (e com todo o sucesso) com uma formação que nos trouxe um Jazz abrangente, acessível e essencialmente físico.

Na bagagem traziam o álbum Breaking Stretch (do qual arrancaram com “Five Suns”), considerado pela prestigiada DownBeat como disco do ano de 2024, a mesma publicação que considerou Patricia a vibrafonista do ano. Nascida no México, começou a estudar música com quatro anos (tocando percussão com o seu pai, acompanhando discos de salsa, ouvindo muito Jimmi Hendrix na companhia da mãe). Ainda antes de se mudar definitivamente para os , já tinha tocado com com Yo-Yo ma ou Paquito D’Rivera, bem como algumas orquestras de nomeada. Entretanto, já se cruzou com a já referida Mary Halvorson, Michel Formanek, Reggie Workman ou Wadada leo Smith, entre outros nomes.

O segundo tema foi o que dá nome ao disco. Tudo começa com o trompete  de Adam O’Farrill (b. 1994, originário de uma família amplamente ligada à música, distinguido em 2019 e 2021, pela mesma DownBeat com o Downbeat Critics Poll for Best Rising Star Trumpeter e os dois saxofones (Mark Shim, em tenor; Jon Irabagon, em alto e sopranino) num discurso entrelaçada, potente e decidido, uma dinâmica que quase poderia fazer as sonoridades que povoavam o jazz de Chicago pela década de 60. De facto, Irabagon aí nasceu, mas em 1978. Integra os incomparáveis Mostly Other People do the Killing (de Peter Evans) e já tocou com gente tão diversa como Wynton Marsalis, Bill Laswell, Dve Douglas ou Barry Altshul. Já Shim (n. 1973 na Jamaica, mas que foi viver para o Canadá com apenas oito anos) tocou com Hamiett Bluiett, Elvin Jones, Greg Osby ou a Mingus Big Band.

“555” começa com Patricia exibindo a sua mestria e segurança, acompanhada essencialmente pelo baterista Dan Weiss e pela pujança de Shim, a que se juntam depois os dois outros sopros, Irabagon agora em sopranino. Sucedem-se riffs marcantes, a dimensão orquestral está bem, patente, mas há quase quem “subtexto” de jazz-rock. Patricia volta a fazer distinguir o seu som, agora dando passagem a um primeiro de vários solos marcantes do percussionista, Keisel Jimenez. Weiss e Jimenenez foram uma vertente importante da noite, tendo mesmo protagonizado um pqueno dueto, já perto do final. Weiss integra os Starebaby, um super-grupo, com Craig Tborn, Matt Mitchell, Bem Monder e Trevor Dunn, que cruz o Jazz com outras linguagens, enquanto o cubano Jimenez já integrou agravação de mais de meia centena de álbuns, de diversos géneros musicais.

“Mudanza (States of Change” foi um primeiro momento em que Patricia falou sobre as suas origens, a sua ida para os EUA, a nostalgia que toda essa situação lhe causa. A emoção desse contexto voltaria a ser evocada, até quando nos desafiava a dançar.  Mais uma vez, a “tour de force” dos três metais a desempenhar um papel primordial e a reforçar a densidade das composições.

“Palo de Oros (Suit of Coins)” começou com o contrabaixista a mostrar os seus dotes, sozinho. Kim Cass tem recebido inúmeros elogios pela sua originalidade, n forma como aborda o seu instrumento, ele que começou a tocarcom 10 anos, estudou com George Garzone, Jose Morris ou Joe Mnaeri e já tocou com Matt Michell ou John Zorn.

Mais uma vez, é uma avalanche de ritmo, aquilo que nos espera, primeiro conduzida por Patricia, depois por Mark Shim e, novamente, com Jimenez a tomar conta das atenções. Aliás, outro dos momentos altos da noite é quando, durante um solo do percussionista, conta com uma cortina de fundo sonora absolutamente orgânica, ou seja, os ruídos naturais (animais) do jardim circundante.

“Sueños de Coral Azul (Blue Coral Dreams”) prossegue a viagem interior de que Patricia já nos falara, novamente demonstrando um bem gerido equilíbrio entre os solos, a orquestração e a intenção de manter alguma condução sobre os destinos de cada composição. E o anunciado último tema, “Los Otros y Yo (Th Other Selves” é uma apoteose merecida, com solos vários e plenos de dedicação (Patricia, O’Farrill, os dois saxofonistas, o tal diálogo de percussionistas), até um final grandioso. Ainda houve um encore (com um trompete ao jeito de Jon Hassell, talvez dispensável) mas foi apenas uma gentileza, estava tudo entregue e partilhado. Saímos do recinto com energia renovada. 

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Jazz em Agosto 2025: Viagem por túneis de som (Elias Stemeseder & Christian Lillinger) https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-viagem-por-tuneis-de-som-elias-stemeseder-christian-lillinger.html https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-viagem-por-tuneis-de-som-elias-stemeseder-christian-lillinger.html#respond Mon, 25 Aug 2025 08:53:17 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25568 Jazz em Agosto 2025: Viagem por túneis de som (Elias Stemeseder & Christian Lillinger)

Uma proposta multimedia que conjuga som e luz, tal como os dois músicos articulam os sons acústicos com os artificiais. O resultado é uma imersão sensorial, uma espécie de site specific musical que convida ao abandono de espartilhos estilísticos.

Texto: João Morales

Fotos: Petra Cvelbar – Gulbenkian Música

Assim que o concerto começa, torna-se evidente o principal motivo para a escolha do Grande Auditório para a apresentação deste duo, Elias Stemeseder & Christian Lillinger, cuja terceira etapa do projecto, o álbum Antumbra (Plaist Music; 2024) servirá de mote ao espectáculo (depois dos dois volumes anteriores de Umbra, envolvendo Peter Evans, e de Penumbra, já em pleno dueto).

A sonoridade inicial que impera conjuga a limpidez do piano, dedilhado com minúcia e parcimónia, ou a característica vibração do cravo, aqui devidamente filtrada, com a dureza dos breaks da bateria. E toda esta envolvência cristalina é acompanhada pela projecção de coloridas tiras ao alto, criando um autêntico cenário virtual que assume uma dimensão fundamental em todo o ambiente que nos é proposto.

A electrónica ganha espaço na prestação de Stemeseder, gradual mas insistentemente, mantendo o diálogo com o seu parceiro, numa constante tensão criativa e interventiva que, amiúde, pode mesmo ser confundida com alguma divergência – ou dispersão. Mas, rapidamente e sem margem para dúvidas, se compreende que tudo não passa de uma estratégia consertada, duas sonoridades que se completam, preenchendo o nosso imaginário e toda uma sala de dimensões consideráveis.

A pesquisa que este duo electro-acústico nos propõe é ambiciosa, esforçando-se por alcançar novos patamares na conjugação de linguagens como a Música Contemporânea, a Improvisão, ou a utilização de samples e outras formas de modificação sonora, a priori, assumidamente artificiais. Durante o espectáculo, foram vários os momentos em que a fragmentação do discurso de ambos se acaba por reconstruir num novo reencontro, introduzindo a importância da intuição e de um forte conhecimento mútuo nessa descoberta constante de soluções.

Os cenários foram sendo alterados à medida das necessidades que a evolução musical impusesse, incluindo momentos de intensa obscuridade, acolhendo autênticos túneis e cornucópias de sons que foram sendo criados com o auxílio da parafernália electrónica, mas também pela acuidade dos dois executantes, equilibrando momentos de contenção e maior espectacularidade.

Elias Stemeseder nasceu em 1990 tem trabalhado bastante a solo e com o seu trio, com Jim Black e Thomas Morgan. Na editora portuguesa Clean Feed podemos encontrar o seu trabalho nos álbuns Suface of Inscripcion (2017), assinado pelo baterista Dre Hocevar, ou Dürer’s Mother (2022), do saxofonista Pospieszlaski. Por seu lado, Christian Lillinger (que já tocou com Joachim Kühn, Miroslav Vitous, Barre Phillips Tobias Delius, Peter Evans ou Alexander Von Schlipenbach, também conta com participações na mesma Clean Feed, como Live at the Armoury, com Gordon Grdina e Mat Maneri, ou Sinister Hypnotization, do Lisbon Berlin Quartet, de Luís Lopes, projecto com o qual já tocara no Jazz em Agosto, em 2014). Passou, por mais que uma vez, pelo palco do Jazz Im Goethe Garden, com destaque para o excelente concerto dos Kuu, corria o ano de 2015 (cuja recenção está indisponível, pois foi escrita para o Diário Digital, que já não existe online).

A parte final deste concerto fica pautada pela entrada da luz natural em toda a sala do Grande Auditório. Removida a parede central do palco, é a vegetação do jardim, um cenário natural e envolvente que serve de pano de funo ao encerramento da longa peça que ocupou toda a prestação. Uma experiência envolvente, arrojada e interdisciplinar, que mereceu um agradecimento de Elias Stemeseder ao técnico de som, Marco Pulidori, constante do programa, porém, mantendo no animato quaisquer responsáveis pela performance de luminotecnia. Depois, foi tempo de penetrar no tal jardim, agora tridimensional. 

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Jazz em Agosto 2025: Hip Hop experimental com guitarra espremida (MOPCUT + Moor Mother + Dälek) https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-hip-hop-experimental-com-guitarra-espremida-mopcut-moor-mother-dalek.html https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-hip-hop-experimental-com-guitarra-espremida-mopcut-moor-mother-dalek.html#respond Mon, 25 Aug 2025 08:44:08 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25563 Jazz em Agosto 2025: Hip Hop experimental com guitarra espremida (MOPCUT + Moor Mother + Dälek)

O activismo de Moor Mother destacou-se, num ambiente em que a batida hip hop conviveu de perto com a destreza de Desprez, peça fundamental do trio MOPCUT.

Texto: João Morales

Fotos: Petra Cvelbar – Gulbenkian Música

Por entre o coaxar discreto das rãs no Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian Audrey Chen começa a fazer ouvir a sua voz, lenta e moderadamente, com um ranger electrónico que ela mesmo vai produzindo por fundo. Depois é a vez de Moor Mother se juntar e as duas mulheres vão tecendo um bailado de vozes entrecruzadas, primeira etapa desta longa viagem. O terceiro elemento a tomar o seu lugar é o baterista Lukas König, explorando o seu instrumento, fazendo soar os pratos com um arco, percutindo com tambores com as mãos, deambulando de forma algo etérea. Sobem ao palco os restantes dois, o guitarrista Julien Desprez e MC Dälek.

E o quinteto fica completo. Passa um avião, Moor anuncia “the many tongues of language”, e o concerto ganha forma.

O desafio para esta noite era juntar o trio Mopcut com outras duas vozes, Moor Mother (que os palcos portugueses descobriam há três anos neste mesmo festival, com os Irreversible Entanglements, concerto sobre o qual podem ler aqui https://branmorrighan.com/2022/08/jazz-em-agosto-2022-irreversible-entanglements-usar-a-memoria-para-questionar.html) e MC Dälek (artista que pratica um hip hop experimental e já colaborou com Faust, Young Gods ou Mats Gustafsson).

Audrey Chen (n. 1976, que protagoniza um duo regular com Phil Minton, há alguns anos), com a voz e o sintetizador, integra o trio MOPCUT, com Desprez e König (que participaram no concerto de dia 3 de Agosto, sobre o qual podem ler aqui https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-20205-aceleradores-de-particulas-sonoras-mariam-rezaei.html). E foi justamente esta dupla de instrumentistas, o cerne de toda a prestação. Desprez voltou a demonstrar toda a agilidade com que gere os pedais, fazendo desse mecanismo um dos pontos distintivos da sua forma de abordar a guitarra. E o baterista austríaco protagonizou várias pontes ao longo da noite, incluindo momentos de quase rock progressivo, enquanto Chen prolongava as suas intervenções vocais, de forma gutural, recorrendo ao sintetizador.

O colectivo foi evoluindo, Dälek e Moor nos extremos do palco, ela bastante animada, dançando, agitando maracas ou outras percussões, enquanto explanava o seu spoken word, ele, mais comedido na sua postura em palco, grande parte do tempo “mergulhado” nas percussões electrónicas.

A noite comportou distintos ambientes – ora uma batida mais sincopada, dando destaque às palavras, com uma dimensão política subjacente e um olhar desencantado, infelizmente, nada que surja como extemporâneo, em tempos de violência generalizada e informação distorcida (“I hope you never have to see”, dizia Moor), ora uma toada mais cósmica, evocando até algum rock sinfónico mais eremita, não fossem os rasgos de Desprez, sempre empenhado.

A gestão que guitarrista faz da distorção, do prolongamento dos seus sons, do tapping no braço do instrumento e, acima de tudo, da já referida distintiva e bem agilizada utilização dos seus pedais, voltaram a confirmá-lo com um dos grandes da actualidade. Actualidade essa que ainda reserva um espaço para alguma esperança. Humanos, seremos sempre, “we’re designed the way we are”, escuta-se, para, mais adiante, ser sublinhada a necessidade de criar novos cenários, intervir em prol do futuro, porque “sometime we have to move on”.

Registe-se um pormenor curioso (pelo menos, do ponto de vista da semiótica): os cinco músicos estão dispostos lado a lado, num ligeiro semicírculo, de frente, uns para os outros. Excepto MC Dälek, na extremidade esquerda, que acaba por quase não ter contacto visual com os seus comparsas.

Depois de mais de uma hora de concerto, ainda tivemos direito a mais um tema. O MC tomou a dianteira (trazendo na voz ecos de outras lides, não só Public Enemy, mas também Suicidal Tenedencies), a secção rítmica musculou a sonoridade, as duas vozes femininas serviram, se algum modo, como contraponto.

Não terá sido um concerto perfeito, mas foi uma noite empenhada e apelativa, com uma desmonstração clara de novas tendências e novos caminhos, coisa que o Jazz nunca temeu enfrentar – pelo contrário, sempre extraiu do seu alimento externo novas formas de actualizar e consolidar a postura. Talvez como dizia Moor, já na fase final, “one day I hope we all see the way”.

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Jazz em Agosto 2025: A Metamorfose (Darius Jones – Legendo of e’Boi) https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-a-metamorfose-darius-jones-legendo-of-eboi.html https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-a-metamorfose-darius-jones-legendo-of-eboi.html#respond Mon, 25 Aug 2025 08:37:17 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25557 Jazz em Agosto 2025: A Metamorfose (Darius Jones – Legendo of e’Boi)

Um daqueles concertos que começam com um tom e acabam noutro. Pelo meio, um convite ao convívio, memórias com quase quatro décadas, a música dos escravos e homenagem ao tio que é responsável por Darius Jones ser saxofonista.

Texto: João Morales

Fotos: Petra Cvelbar – Gulbenkian Música

Falemos então sobre o concerto de Darius Jones, a partir do álbum Legend of e’Boi (The Hypervigilant Eye), lançado em 2024 (este é apresentado como o sétimo capítulo de uma empreitada de nove, iniciada em 2009, sob a designação Man’ish Boy).

Na verdade, quase que poderíamos falar de dois concertos. Segue a explicação. Domingo à noite, dia 3, o saxofonista apresentou-se no Anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) em formato de trio, acompanhado pelo contrabaixo de Chris Lightcap e bateria de Gerald Cleaver. Trazia ainda consigo a aclamação na edição anterior do mesmo Jazz em Agosto (texto disponível aqui: https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-com-as-cordas-da-alma-darius-jones-fluxkit-vancouver.html). Contudo, iniciou a sua prestação de forma controlada; um sopro contido (embora seguro), intervenções curtas e espaçadas, pontuando a convergência da secção rítmica –  gente cúmplice (os dois, tocam juntos há um quarto de século), gente mais que competente e bem rodada. Senão, vejamos:

Chris Lightcap tocou com Butch Morris, Marc Ribot, Rob Brown, Anthony Braxton ou Joe Morris, entre vários outros (tem um par de discos bastante interessantes, “Deluxe”, de 2010, e “Epicenter”, de 2015, na editora portuguesa Clean Feed). Quanto a Gerald Cleaver, conta nas suas gravações com a presença de Craig Taborn, Tony Malaby, Joöelle Léandre, Louis Sclavis ou Larry Ochs (em 2020, num caminho completamente distinto, assinou um interessante álbum a solo, Signs, repleto de electrónica). Ambos demonstraram, noite fora, uma agilidade assinalável e uma dinâmica de grupo (embora com espaços para solos de cada um) que ajudou a noite a vingar.

Passados os dois primeiros temas, “We Outside” e “Another Kind of Forever”, Jones dirigiu-se ao público, anunciando a peça seguinte, “We Inside Now”. Mas, fez mais, pediu que, quem quisesse, se aproximasse do centro do palco, podendo sentar-se no chão, mesmo junto aos músicos, potenciando a comunhão pretendida. Pediu mesmo aos seguranças para não impedirem a movimentação.

Quem já frequentava o Jazz em Agosto na década de 80, recorda certamente o formato antigo, com um estrado em semi-círculo, mesmo junto ao palco. Pois, foi essa imagem que regressou dos confins da memória, como se numa espécie de realidades temporais distintas tivesse havido um cruzamento.

Jones começou então uma balada intensa, os seus dois comparsas correspondendo devotamente, com o público a anuir. Um, outro, outro, outro… vários, adultos e crianças. Bonito, sim senhor. O ritmo sincopado vai tomando conta da atmosfera e a felicidade do momento contagia o saxofone. Algo mudou a partir dali.

Quando o tema terminou, a equipa da FCG apressa-se a “convidar” todos a regressarem aos seus lugares, no anfiteatro, dando por terminada a “experiência”. Jones agradece, saúda, e apresenta o tema seguinte, dedicado ao tio, libertado há pouco da prisão, “um homem complicado”, responsável pelos primeiros incitamentos ao sobrinho para a dedicação ao saxofone. “Motherfuckin Roosevelt” é o título e é já um homem diferente quem agora escutamos, sentado, manipulando com gosto o seu saxofone, mais interventivo, tudo começando com um toque de blues, para a intensidade se ir consolidando, com os três perfeitamente alinhados. Darius Jones discursa, musicalmente falando, amigavelmente, mas com entrega e segurança. Não restem dúvidas: este homem é um sentimental.

Jones anuncia o último tema. Trata-se de um antigo blues, cuja génese está associada à escravidão, a versão de Henry Jimpson Wllace foi gravada numa penitenciária por Alan Lomax, um dos grandes arquivistas musicais americanos. Chama-se “No More, My Lord” (vale a pena procurarem a versão cantada, na Internet) e a tensão que os três alimentam rapidamente desemboca numa liberdade completamente distinta da fase inicial do concerto. Há agora uma influência nítida do Jazz dos anos 60, da espiritualidade e liberdade que pautavam os caminhos da música americana por esses dias. Não chegando a ser Free Jazz, a respiração é outra, os dedos de Chris Lightcap movem-se com mais energia e os pratos de Gerald Cleaver fazem-se ouvir distintamente.

D

epois de um forte aplauso colectivo, a saída de cena é meramente circunstancial, os músicos regressam para um encore mais que apetecido. O tema reservado é “Affirmation Needed”, com Jones a espraiar-se em solos felizes, explorando uma gama razoável de agudos, saltitando por entre escalas. E também nós saímos do jardim com um sorriso no rosto.

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Jazz em Agosto 2025 – Aceleradores de partículas… sonoras (Mariam Rezaei) https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-20205-aceleradores-de-particulas-sonoras-mariam-rezaei.html https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-20205-aceleradores-de-particulas-sonoras-mariam-rezaei.html#respond Sun, 17 Aug 2025 13:29:38 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25550 Jazz em Agosto 20205 – Aceleradores de partículas… sonoras (Mariam Rezaei)

Um trio predisposto a testar os limites audiófilos da assistência. Um furacão. Energia e improvisação. Electrónica sem vergonha. E tudo isto a resultar. Mariam Rezaei conduziu a carruagem e nós confiámos. Fizemos bem.

Texto: João Morales

Fotos: Petra Cvelbar – Gulbenkian Música

O concerto mais surpreendente desta edição do Jazz em Agosto. Domingo, dia 3, 18h 30. Mariam Rezaei (inglesa, n. 1984) entra em placo e toma o seu lugar ao centro, junto dos seus gira-discos e parafernália electrónica. A sala – muito bem preenchida – é invadida por uma variante de Ry Cooder, devidamente contaminado por um ambiente sónico. A distorção e a manipulação ganham terreno, o território noise insinua-se e há momentos em que uma movimentação circular toma o rumo dos acontecimentos.

A gestão dos sons, incluindo de instrumentos de sopro, ou até mesmo vozes humanas, devidamente fragmentados e novamente reagrupados, concede novos sentidos ao material sonoro original. Rezaei é, simultaneamente, engenheira e operária desta construção. Eisenstein defendia que o verdadeiro filme se constrói na sala de montagem – aqui, essa visão ganha defensores, transpondo o conceito para a dimensão musical.

Juntam-se os seus dois cúmplices em palco. Julien Desprez é um guitarrista francês deveras original, cujo percurso dos primeiros anos conta com a cumplicidade de Charlie Haden, Louis Sclavis, Han Bennink, Rob Mazurek, Noël Ackchoté, David Grubbs ou Marc Ducret. E já deu mostras neste mesmo festival da sua inventividade: se, ainda em 2024 esteve por cá integrando a Fire! Orchestra de Mats Gustafsson (velho companheiro dos palcos), quem se recorda da Coax Orchestra, em 2017, sabe bem do que ele é capaz (podem ler a reportagem aqui: https://branmorrighan.com/2017/07/coax-orchestra-jazz-em-agosto-2017.html).

O terceiro elemento é o austríaco Lukas König (n. 1988), sentado à bateria e com a ajuda de alguma amplificação poderosa. Reggie Washington, Steven Bernstein, Jamaaladeen Tacuma, Briggan Krauss, David Murray ou Elliott Sharp são alguns dos nomes com quem já trabalhou, potenciando a relação entre a bateria e as possibilidades que a electrónica lhe proporciona, numa abordagem que tanto deve ao gore como aos caminhos trilhados por Günter Müller (o homem por detrás da chancela for4ears).

Reunida a trindade, revela-se na sua plenitude a dimensão avassaladora que nos vai transportar sem tréguas, evocando a cada instante um melting pot onde cabem Christian Marclay, Napalm Death, Sonic Youth, Massacre (de Fred Frith), Tim Hodkinson e muitas outras intensas aventuras sonoras.

Desprez percute a guitarra, não é apenas pelo dedilhar das cordas que executa o que pretende. Em completo êxtase, o braço do instrumento, os botões de afinação, os carrilhões, tudo é território válido. As pernas executam uma dança fervorosa, pela qual vai alternando os pedais que usa (uma peça fundamental da sua linguagem distintiva), a uma velocidade considerável.

König despeja energia e ritmos marciais, não poupando nenhuma das peças da bateria, como um vulcão compassado e impiedoso. Na parte final do concerto, dará especial atenção à tarola, o que confere uma dimensão um pouco mais acústica sua prestação. E Rezaei, visivelmente feliz, veleja por uma autoestrada sonora que vai construindo com os sons alheios que reorganiza, tudo conduzido com mestria, sem tréguas para a audiência (que, diga-se em abono da verdade, também não saberia o que fazer com elas).

Não houve quaisquer paragens durante o concerto, a prestação assentou numa contínua evolução, a função durou uma hora – que passou num ápice e sem tempos mortos – no final da qual a sala não poupou (mais que merecidos) aplausos e outras manifestações de apreço. Já todos ouvimos falar do acelerador de partículas, ficámos a conhecer a versão musical.

«Como posso fazer o gira-discos soar tão extremo como Roscoe Michell ou Peter Brötzmann?», reflectia Rezaei numa entrevista à Wire, em 2023. Bom, pelo que pudemos assistir, encontrou o seu caminho.

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Jazz em Agosto 2025: Da memória primordial (Heart Trio) https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-da-memoria-primordial-heart-trio.html https://branmorrighan.com/2025/08/jazz-em-agosto-2025-da-memoria-primordial-heart-trio.html#respond Sat, 16 Aug 2025 22:01:58 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25543 Jazz em Agosto 2025: Da memória primordial (Heart Trio)

Um anfiteatro completamente esgotado assistiu à magia do Heart Trio. A abertura do Jazz em Agosto voltou a demonstrar a ampla abrangência das propostas do festival e, numa edição onde se ouviria bastante electrónica, não podia começar de forma mais acústica.

Texto: João Morales

Fotos: Petra Cvelbar – Gulbenkian Música

A abertura da 41ª edição do Jazz em Agosto, na Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), esteve a cargo de um trio intenso, composto por figuras de proa da improvisação das décadas mais recentes, agregadas sob a designação Heart Trio, cuja música ficou fixada em CD homónimo, publicado em 2024. Três homens em palco. Todos americanos. À direita, um baterista, ao centro um instrumento de corda de caixa esférica (mais à frente voltaremos a ele). À esquerda, sobre as pernas do músico, um estranho xilofone em forma de trapézio. que dá o sinal de partida e o acompanhará nos primeiros tempos do concerto.

Não é de swing, de free jazz ou de algum outro conceito mais ou menos aparentado com a família do jazz que se trata. Conheceremos um folclore sem fronteiras nem época, gerado pela memória, accionado pela improvisação dinâmica, motivado pela osmose que serve de fio condutor aos longos temas apresentados. O ritmo, é uma das traves-mestras deste edifício, mas não ostentado em demasia, antes insinuando o carácter percussivo imprimido aos instrumentos, cabendo a cada um dos três, partes equitativas do resultado final.

Regressemos ao trio, agora da esquerda para direita. Cooper-Moore (n. 1946, baptizado como Gene Y. Ashton) não é apenas o talentoso pianista que durante anos acompanhou David S. Ware, mas também um engenhoso construtor de instrumentos, como a espécie de violino suportado na boca, que trouxe consigo, ou a harpa horizontal.

William Parker (n. 1952) não carrega o contrabaixo que o celebrizou (primeiro com Cecil Taylor, depois liderando a sua Little Huey Creative Music Orchestra, ou aglutinando músicas negras, como no genial projecto The Inside Songs of Curtis Mayfield). Divide-se por diferentes flautas, pelo duduk (o chamado oboé arménio) e cordofones, como o donso ngoni (instrumento cujo corpo central é feito a partir de uma cabaça, coberta por pele de cabra, de onde sai o braço, o tal aparelhómetro com que abriu o concerto).

E Hamid Drake (n. 1955), que toca há muito com ambos, em diferentes contextos, reforçando a cumplicidade sentida ao longo de toda a apresentação do colectivo. Os três conhecem-se bem, até porque integram o coletivo In Order to Survive (que já conheceu diversas formações).

Apesar de nascidos nos EUA, é evidente a herança, a tradição e a diáspora que incorporam, na senda de vários idiomas sonoros, evocando distintas geografias, articulando África, Ásia ou o Médio-Oriente. Música que nascerá da memória, mas uma memória primordial e sensitiva.

Coesão e hipnotismo serão duas das palavras que podem ajudar a definir o ambiente gerado, oferecendo um clima de assumida espiritualidade e devoção, articulando ancestralidade e improvisação. Se, ao início do segundo tema, somos transportados para sons que evocam o blues desnudo e primordial da primeira metade do séc. XX, momentos houve em que a Arábia ou a as profundezas da selva africana também seriam inspiração a ter em conta. Tudo isto circundado pelos sons naturais do jardim da FCG, convivência apenas entrecortada – como habitualmente – pelos aviões que sobrevoam esta área.

Ao longo de hora e meia de música (apenas com duas paragens) passaram pelo palco do Anfiteatro ao Ar Livre um conjunto de instrumentos pouco óbvios, reforçando o carácter etnográfico da sonoridade que serve de base à improvisação dos três músicos, mas também o carisma da sua prestação.

A parte final do concerto foi um dos momentos altos, na sua convergência, em ascese e abrangência. Cooper-Moore pontuando com duas baquetas (uma na outra), primeiro, depois com o tal parente de violino que utiliza também a boca, (mais percutido que raspado) Parker, exímio no sopro; Drake, entoando uma melopeia que acompanha com a sua frame drum (parente do nosso adufe). A dimensão telúrica, a memória colectiva desencadeada, vão crescendo e convergindo, ganhando velocidade e corpo. E nós com eles.

«Heart to Resist. Heart to Sing! Heart to be yourself! Heart to share and love one another. That what this is about», proclamou Wiliam Parker antes de apresentar os seus parceiros. Só nos restava levantarmo-nos e aplaudir veementemente.

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Jazz em Agosto 2024 – As mãos dele são barcos [The Locals] https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-as-maos-dele-sao-barcos-the-locals.html https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-as-maos-dele-sao-barcos-the-locals.html#respond Wed, 14 Aug 2024 08:59:07 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25536 Jazz em Agosto 2024 – As mãos dele são barcos [The Locals]

A noite de dia 9 de Agosto foi dedicada à música de Anthony Braxton, reinventada pelo quinteto The Locals, com Pat Thomas e Alex Ward a liderarem uma noite surpreendente. Uma roupagem servida por batida Funk, acabava por desvendar a complexidade do compositor de Chicago. Mas aí, já estávamos todos rendidos…

Texto: João Morales

Fotos: Vera Marmelo/ Gulbenkian Música

Como tinha anunciado, a presença do Blog Bran Morrighan no Jazz em Agosto 2024 foi um bocadinho “de fugida”, mas concertos como este fazem justiça à qualidade habitual do certame que, recorde-se em abono do merecido elogio, completa este ano quatro décadas de um metódico, insistente e coerente percurso, desde a sua edição inicial, composta apenas por projectos nacionais, desbravando a partir daí a imensa paisagem que brota das fusões e derivações a que um género musical desta natureza sempre esteve assumidamente sujeito. Uma palavra de apreço a todos os programadores que desenharam estes 40 anos e, naturalmente, a casa que acolhe o encontro, cujos nomes já se confundem pela sua natural predisposição para uma atenção constante à actualidade à memória.

Passemos então ao concerto da noite e 9 de Agosto. Mal começa o primeiro tema, entendemos que a música em questão vive de dois factores: por um lado, a riqueza das composições de Anthony Braxton, o padroeiro cujas composições estão na origem e na energia que move este quinteto, por outro, a sombra de um certo Funk, constante e assaz flexível, que transporta estes temas para um novo universo, proporcionado terreno fértil para a versatilidades dos músicos agrupados, The Locals.

O projecto (fixado em CD em 2021, “Plays the Music of Anthony Braxton”, embora se trate de uma gravação ao vivo de 2006) surge com o nome de Pat Thomas à cabeça, histórico pianista fortemente influenciado pelo jazz mais livre (nasceu em 1960), que já se cruzou com músicos como Lol Coxhill, Steve Beresford, Thurston Moore, Phil Minton ou Eugene Chadbourne. Já passou mais que uma vez pelo Jazz em Agosto, sendo as presenças mais recentes com o quarteto Ahmed, em 2022, e integrado no Trance Map +, de Evan Parker, no ano seguinte.

Thomas é de uma agilidade assinalável, as suas mãos percorrem o teclado com mestria, esquerda e direita trocam facilmente de posicionamento, vagueiam ou matraqueiam o teclado com o primor de quem sabe bem em que águas navega. As suas mãos são barcos, conhecedores das marés em que se movem, ditando mesmo a cadência das vagas, quando necessário. Nota-se bem uma sabedoria antiga, no discurso musical, na escolha dos momentos para abrir “hostilidades”, acolher “consensos”, promover conjugações.

Contudo, há um outro elemento fundamental para o sucesso desta ideia feita grupo que, não só sublinha, mais uma vez, a riqueza da escrita de um dos fundadores da mítica Association For the Advancement os Creative Musicians (AACM), na década de 60 do séc XX, como transporta essa mesma música para uma dimensão distinta, marcada por uma secção rítmica rígida (mas atenta e competente), trazendo consigo heranças de outras famílias sonoras, como o Harmolodics ou o M-base – sendo, necessariamente, uma coisa diferente.

E esse elemento é o magnífico clarinetista Alex Ward (n. 1974). Com 12 anos de idade conheceu Derek Bailey, uma das sumidades da nova música improvisada, no ano seguinte tocou com ele (na lendária formação variável Company) e, em 1991, grava o seu primeiro disco, com o percussionista Steve Noble, justamente na Incus, a chancela de Bailey. Descubram-no em The Convergence Quartet; Son/ Dance (Clean Feed; 2010)

Ward solou com toda a elegância ao longo da noite, integrando o seu discurso em momentos imbuídos de um certo Free-Funk, ou Funk-Rock, em passagens herdeiras de um reggae bastante artesanal (como no último tema, antes do encore), em trocas de galhardetes com o piano de Thomas ou a secção rítmica (em especial a guitarra de Evan Thomas), em sequências de exploração colectiva que traziam de novo à tona a essência experimentalista que move estes homens (como o encore, que começou com uma balada, para derivar rapidamente em cascata de várias frentes), ou deambulando em contramão com a simplicidade aparente que o invólucro sabiamente potencia.

O quinteto tocou cinco temas, mais um encore, tendo o baixista Dominic Lash (n. 1980, com um percurso que engloba prestações com John Butcher, Evan Parker, Joe Morris ou o histórico Tony Conrad, nome maior do minimalismo) trocado o eléctrico pelo contrabaixo em duas das faixas, curiosamente, mostrando-se mais flexível nesse registo. A formação foi completada com o baterista Darren Hasson-Davis, figura com um percurso essencialmente académico, no ensino de bateria.

No final, perante uma audiência alargada, cinco homens demonstraram como a música permite várias abordagens a uma mesma composição, como o essencial se prende com a alegria da comunhão e como nunca estão esgotadas as vias de acesso a um estilo ou um músico. Pelo menos, para quem conhece bem as águas em que navega.

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Jazz em Agosto 2024 – Um corpo colectivo [dieb13 Beatnik Manifesto] https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-um-corpo-colectivo-dieb13-beatnik-manifesto.html https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-um-corpo-colectivo-dieb13-beatnik-manifesto.html#respond Wed, 14 Aug 2024 08:54:29 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25529 Jazz em Agosto 2024 – Um corpo colectivo [dieb13 Beatnik Manifesto]

Se a beat generation assentou na glorificação do individuo, este Beatanik Manifesto inverte os pressupostos e faz do som colectivo, da orquestração, a sua mais-valia.

Texto: João Morales

Fotos: Vera Marmelo/ Gulbenkian Música

Quando pensamos em Beatnik, a imagem que nos ocorre é de um indivíduo – viajante, bardo, aventureiro – mas um indivíduo. O projecto Beatnik Manifesto, concebido e coordenado por dieb13, assenta precisamente num pressuposto invertido, ou seja, ao longo do espectáculo o que sobressai é a dinâmica colectiva, a sonoridade obtida pela conjugação do extenso leque de músicos e a dimensão quase maquinal que se obtém com esse efeito. O simples facto de não ter sido dirigida ao público uma única palavra, entre o início e o final do concerto, bem como a ausência de qualquer apresentação dos músicos, não parece ser casual, antes acentua essa mesma construção.

Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, final da tarde de dia 9 de Agosto. O palco encontra-se repleto, são 14 músicos, incluindo dieb13, responsável pela composição desta peça (distribuída por vários movimentos), montagem das imagens de vídeo a que vamos assistindo e manipulação de um gira-discos. Este austríaco (cujo nome é Dieter Kovačič) tem trabalhado em colaboração com diversos nomes da vanguarda do Jazz, como John Butcher, Mats Gustafsson ou Günter Müller.

A orgânica desta pequena orquestra assenta na repetição de instrumentos: duas baterias, dois contrabaixos, duas guitarras eléctricas, dois clarinetes-baixo e um sax alto, dois manipuladores de electrónica. E uma dupla de vozes ao centro: Karolina Preuschl e o histórico Phil Minton (nome que se associa rapidamente a Mike Westbrook, Veryan Weston ou Roger Turner). Logo a abrir surgem palavras na tela que ajudam a contextualizar: Beatniks We Are. A voz que ouvimos é a de Minton e, sobre um crescendo dos sopros, demonstra um pouco das suas capacidades, começando pela leitura (ora suave, ora quase gritada), fazendo brotar perante os nossos olhos figuras que remetem para o universo do cartoon, sussurrando, graduando a cadência da respiração, percorrendo um manancial de efeitos torácicos que só ele conhece.

As imagens vão surgindo na tela, ora um cenário marinho e as suas vagas, ora rostos como os de Donald Trump ou Allen Ginsberg, ora animais fosforescentes. As duplas de instrumentos semelhantes dão, várias vezes, azo a diálogos mais ou menos frenéticos, como foi a dupla de guitarras eléctricas de Sandy Ewen e Finn Loxbo, ou as baterias de Erik Carlsson e Camille Émaille.

A composição que vai avançado assenta nas suas possibilidades orquestrais, sendo que o factor de improvisação está também presente de forma mais ou menos constante, embora sem que seja o de maior evidência. Ou seja, por cima da conjuntura colectiva vão discorrendo os diferentes naipes e, aí sim, há margem de manobra para confrontar o material já composto.

Há vários momentos de maior intensidade, como o despique entre os três instrumentos de palheta, a passagem em que os Karollina e Minton vocalistas assobiam com o nariz tapado, criando efeitos incríveis, a dinâmica entre declamação, quase no domínio da acalmia, e uma intervenção das vozes mais aguerrida (Minton esteve igual a si mesmo, com os trejeitos de corpo, o jogo de aproximação/ afastamento ao microfone e a sábia gestão de inspiração e expiração).

Uma pequena nota para reflectir sobre uma opção – legítima – que tem vindo a ganhar terreno em alguns locais de concertos (que a não tinham). Durante anos habituámo-nos a encontrar uma folha de sala, não apenas com informação referente aos músicos envolventes e respectiva instrumentação, mas também algumas considerações/ contextualização sobre o que vamos e ouvir. Numa lógica de sustentabilidade ambiental, várias são as instituições que abandoam a criação e difusão dessa mesma folha. Contudo, seria de reflectir sobre a pertinência da sua permanência.

A energia colectiva gerada pelas dinâmicas conduzidas por dieb13 resulta com eficácia em cada movimento, talvez falhando um pouco a noção de globalidade, a ligação entre as várias partes. Há um regular fluxo de tensão que não cede a repetições ou lugares-comuns, demonstrando uma vitalidade assinalável, explorando caminhos nem novas incursões na tantas vezes designada terceira via, ou seja, a confluência entre música composta e o espaço destinado a acolher a perspectiva individual que significa a improvisação. No fundo, como o Jazz tantas vezes tem feito ao longo da História.

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