Com uns meses de atraso, aqui fica a devida menção honrosa a um daqueles que foi, para mim, um os discos do ano. Vénia é o primeiro EP de João Vairinhos, disponível em vinil no seu bandcamp. Diz a sua biografia que “é um baterista que cresceu como músico no circuito punk/hardcore nacional. Atualmente colabora de forma regular com MURAIS, LÖBO, Ricardo Remédio e Wildnorthe, e de forma mais pontual noutros projectos como os The Youths com Bruno Cardoso (XINOBI), ou Altura (João Brito), com quem gravou um EP colaborativo com o nome The Citadel.“
Com um currículo destes, quem não ficará curioso por ouvir o resultado de uma experiência a solo? O single de estreia, Vala Comum, abriu portas para um universo que nos veio mostrar um lado de João Vairinhos ainda inexplorado e que muito se tem apurado desde a sua primeira criação Eternos São os Corvos. A viagem que percorremos com Vénia é uma que é capaz de inspirar os cenários literários e cinematográficos mais intensos, em que todo o ambiente nos parece encaminhar para aquele acontecimento que poderá mudar a vida de todos.
Curioso que, nos temos em que vivemos com a pandemia a morder-nos os calcanhares, a criação deste disco foi uma espécie de premonição. Os seus três temas – Chegaram, Vala Comum e Vénia – encadeiam-se de uma forma orgânica e desafiadora, ao mesmo tempo que contemplativa e de cariz distópico. Com o caos em que vivemos, os hospitais sobrelotados, as mortes a aumentarem, o desespero e a solidão que a tantos assaltam, ouvir estes disco é uma espécie de catarse.
A partir do momento em que os sinos são evocados na faixa “Chegaram”, iniciamos uma marcha que podia ser muito bem pelo universo de Hades, com todas as aventuras e desventuras da selvajaria com que são relatadas as aventuras dos deuses. Mas tal como Hades tem Perséfone, também a criação de João Vairinhos tem um cariz sedutor pelas sombras que evoca e que destrói. Este universo noir conta com as colaborações de Sérgio Prata Almeida na faixa “Vala Comum” e de Ricardo Remédio na faixa homónima “Vénia”, que vieram enriquecer ainda mais a paisagem fascinantemente dantesca.
As sonoridades exploradas estão longe de conter apenas a bateria com a qual estamos habituados a ver o músico português a ser dono e senhor. Fazendo uso de outras maquinarias, o aprendiz tornou-se mestre. Vénia constrói uma realidade na qual nos podemos refugiar e reflectir, na qual nos podemos desconstruir e recriar, estando à mercê de luz e escuridão, rendendo-nos aos demónios interiores que enfrentamos e seguindo em frente. Já dizia Bukowski “what matters most is how well you walk through the fire“. Fica a recomendação: não sei se encontram melhor companhia.