Cajarana, de André Henriques
Dia 13 de Março fez um ano que Cajarana, o primeiro disco a solo de André Henriques, viu a luz do dia. Lembro-me bastante bem de quando este disco saiu e do quanto esteve em repetição nas minhas idas para a faculdade. Na altura, do outro lado do oceano, qualquer contacto com este pedaço à beira-mar era tido com cautela. Emigrar não foi fácil para mim e à distância física juntei a distância cultural para que tudo se tornasse mais fácil. No entanto, houve alturas em que me foi impossível ficar indiferente. A saída de Cajarana foi um desses momentos.
Sendo completamente fã de Linda Martini há quase duas décadas, habituei-me a ver o André armado de guitarra eléctrica e autor de letras disruptivas e viscerais num registo colectivo em que a catarse chegava nos mais altos decibéis e num estado de êxtase frenético. O que descobri com Cajarana é que o músico português consegue ter um efeito semelhante, porém num registo despido, perspicaz, direccionado à simplicidade acutilante que é rendermo-nos sem pretensiosismo àquilo que nos habita a mente, mas que tendemos a dispensar com a facilidade de quem evita olhar-se ao espelho.
E o mais engraçado é que a capa do disco, em colaboração com o colectivo Dobra, vem precisamente desse exercício: “A capa do disco é um auto-retrato cego que fiz em frente ao espelho, sem nunca olhar para a folha ou para a mão que desenhava. Fiz vários desenhos seguidos, em cada um demorava não mais do que 2 minutos. No final, ao ver todos os que tinha feito acabei por escolher o primeiro”. Este exercício de humildade e de auto-inspecção reflecte-se também nas composições do disco. É difícil colocar Cajarana numa qualquer caixa etiquetada e acredito que o processo de procura de uma prateleira onde o colocar é o próprio destino.
Nesta viagem, não só navegamos por diferentes ritmos que tanto nos embalam como nos inquietam. O mesmo acontece com as letras. Existe por vezes uma leveza na musicalidade de certas canções que contrasta com a simplicidade inquietante e desconcertante das letras. Refiro-me por exemplo a “Maria Odete”, um exemplo claro de violência doméstica ou “Para me aleijar” que é a banda sonora perfeita para aquele amor arrependido que ficou lá atrás ou que ainda estará para vir, porque “quem nunca?”.
Já “Pais e Mães e Bichos” alicia uma vibração sonora pujante a uma espécie de grito que tantos silenciam relacionado com isto da expectativa de se crescer, ter um trabalho, uma família e ainda assim perseguir sonhos sem nos perdermos pelo meio. Uma ilusão que nos incutem e que vivemos enquanto miúdos e adolescentes e que facilmente se torna num pequeno pesadelo quando lá chegamos. Ou assim interpreto, perdoem-me a liberdade. Em relação a “Platão pediu um Gin” eu sou mais de cerveja ou um bom vinho tinto, mas foi uma canção que também encontrou a sua ressonância empática.
A verdade é que o próprio início do disco avisa-nos que está na altura de nos libertarmos de acessórios e olharmos de frente para dentro com a honestidade possível – ou não tivesse André gravado “Espelho Meu” numa casa de banho em frente ao espelho com a sua guitarra acústica e o seu telemóvel. Os singles “E de repente”, “Uma casa na praia“, e “As Melhores Canções de Amor”, exploram também um pouco um ideal de enamoramento e relacionamento que são desconstruídos com uma linguagem a roçar o romântico, mas que é sobretudo incisiva na sua mensagem sem que ainda assim se perca um lado necessariamente sonhador.
Já “Tecido não tecido” é-me uma realidade ainda distante – mas adoro o ritmo e só posso imaginar a montanha russa. “O seu melhor chapéu” evocou-me um qualquer duelo por ser resolvido, entre a expectativa e a condenação, com uma sequência rítmica de registo. “De tudo o que fugi” é um corrida metafórica muito pessoal que também evoca uma fuga literal do ponto onde se está até onde quer que a vida nos leve que contrarie tudo o que nos oprimiu antes. O disco termina com “Pese embora” é o fechar do círculo em Cajarana. E o fim encontra o início através da simplicidade da melodia e da produção, com uma letra com que é fácil identificarmo-nos quando pensamos nas expectativas que outros podem ter sobre nós.
Acabei a escrever mais do que estava à espera, mas a verdade é que este disco acompanhou-me tanto enquanto estive nos Estados Unidos que serviu muitas vezes de banda sonora a uma reflexão mais profunda sobre as minhas opções e decisões, o que foi e o que é, o que gostava que fosse? Quando se sente muito é bom encontrar estes discos que nos ajudam a não sentirmos sozinhos. E é isto. Obrigada, André.
André Henriques sobre “Cajarana”:
A inspiração para o nome do álbum remete para uma novela brasileira da década de 80: “Pai Herói”. “O personagem principal, interpretado por Tony Ramos, chamava-se “André Cajarana” e eu, como era o único André na minha escola, ganhei uma alcunha que detestava. É uma memória de desconforto e de construção de identidade, duas questões com as quais me debati quando decidi fazer um disco a solo”, avança o músico.
Anos mais tarde, conheceu Ricardo Dias Gomes, músico brasileiro, que viria a co-produzir o álbum de estreia com André Henriques. “Durante um mês encontrámo-nos algumas vezes para registar as canções que me iam surgindo e pensar os arranjos. Num desses encontros disse-lhe que queria chamar ‘Cajarana’ ao disco e contei-lhe a história da novela e do desconforto que me causava a alcunha em miúdo”.
A curiosidade é que o músico brasileiro respondeu que não se lembrava da novela mas ao pesquisar na internet deparou-se com a curiosidade máxima: “Caramba, foi a minha avó que escreveu essa novela”. Ficámos os dois perplexos. Nascemos os dois no mesmo ano, em dois lados opostos do Atlântico, decidimos trabalhar juntos sem nos conhecermos e no final de tudo tínhamos entre nós esta desconcertante coincidência”.
Cajarana é um álbum feito de impulso, composto num período de 2 meses, juntando músicos em 6 ensaios e, em menos de uma semana, concluindo o álbum que vê agora a luz do dia.
“É um exercício de humildade, fazer canções simples sem cair na tentação de as limar e as reescrever vezes sem conta. É um disco de impulso que quer expôr a fragilidade das canções. Como se elas exigissem o cuidado de quem escuta para não se partirem antes de chegar ao fim.”